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Sinopse

Karen, vocalista e trompetista, decide ir embora de Brasília, pois está cansada de lutar por um lugar ao sol com sua banda de rock. Seguindo os passos de um ex-parceiro de grupo, ela decide tentar a sorte em Berlim. O convite para a jornada parte de Martin, amigo alemão que permite a configuração de um triângulo improvável.

Crítica

Triste vida a de Karen (Ayla Gresta), Artur (Gustavo Halfeld) e os colegas de banda. Por mais que se dediquem a apurar sons e letras de seu rock provocador, não encontram público na cidade de Brasília. Mesmo posicionando-se contra o sistema, são obrigados a trabalhar em empregos cujos ideais não compartilham. Eles amam a cidade, mas não se sentem amados de volta. Dentro da família, encontram pouco apoio. Ainda Temos a Imensidão da Noite trabalha com jovens adultos abandonados numa cidade fantasma, de grandes avenidas vazias, desprovida de senso de comunhão ou interesse pela arte e cultura. No caso da protagonista, o descaso em Brasília provoca uma rebeldia inconsequente. Ora ela responde ao barulho de uma construção civil com o som de seu trompete (bela metáfora do enfrentamento entre arte e cidade), ora apenas xinga as pessoas e sai do recinto.

O roteiro concebe a ideia de marginalidade menos como um conceito social (a banda Animal Interior, da qual Karen faz parte, é composta tanto por habitantes da periferia quanto do Plano Piloto) do que como uma ideia de impulsividade, uma anarquia que mistura heroísmo e sacrifício na dedicação à carreira musical. Um dos melhores aspectos deste drama é sua capacidade de captar o vigor juvenil dos personagens, bem representado em contraste com o rigor das linhas arquitetônicas de Brasília e com o silêncio das avenidas e praças diante dos esforços musicais de Karen. O diretor Gustavo Galvão constrói um filme de muita convicção e pouco afeto, onde as amizades fluidas (com os colegas da banda e com o amigo interpretado por Marat Descartes) substituem os precários laços românticos e familiares. A música, neste caso, não é apenas um gesto de comunicação, mas também um movimento de afronta contra a inércia geral – vide a cena de Karen se revoltando dentro do ônibus. Estas pessoas lutam, em primeiro lugar, contra a invisibilidade.

Apesar do interessante painel social, algumas escolhas de direção de imagem e de atores prejudica o resultado. Galvão parece hesitar entre o realismo e a alegoria, criando ora cenas bastante naturalistas (as apresentações da banda), ora instantes que soam extraídos de esquetes cômicas (o interrogatório na delegacia). Às vezes a raiva dos personagens é bem trabalhada, a exemplo da performance diante de um prédio residencial, ora a ira soa artificial, sobretudo em momentos catárticos (a revolta contra o patrão insensível). É tão plausível que um membro da banda anarquista trabalhe para o governo quanto difícil crer na chegada do alemão Martin (Steven Lange), aparentemente sem qualquer objetivo na cidade de Brasília a não ser observar o casal formado por Artur e Karen, oferecendo-se como óbvio vértice de um triângulo amoroso em potencial.

Em paralelo, todo o segmento em Berlim se torna deslocado, mal aproveitado. Por que Karen faria toda essa travessia sem jamais procurar tocar profissionalmente (visto que a única oportunidade surge por iniciativa de Martin)? De que maneira os relacionamentos fluidos se ajustam à cidade tão diferente da realidade da trompetista, para além das mecânicas cenas de sexo? Berlim se limita à função de cenário exótico e diferente – a neve contra o clima seco de Brasília, os bares independentes cheios dos europeus contra o deserto brasiliense – sem se transformar em personagem autônomo. Recentemente, o cinema brasileiro ofereceu um interessante olhar latino-americano à capital alemã em Muito Romântico (2016), mas neste caso, a viagem constitui sobretudo uma fuga, um lugar outro em relação a este. Mesmo as complicações encontradas por Karen após uma turnê em Istambul resultam inverossímeis.

Por fim, Ainda Temos a Imensidão da Noite compartilha qualidades e defeitos de seus personagens. O filme cheio de iniciativas carece de estrutura para canalizá-las. Ele se expressa numa fúria que combina bons momentos de atuação com outros artificiais, alguns diálogos coloquiais com outros escritos demais. Este é um projeto cheio de arestas, abandonando personagens e resgatando-os conforme interessa à narrativa. O drama não é nem linear o suficiente para articular elipses e paralelismos entre personagens; tampouco experimental o bastante para brincar com formas, ritmos, texturas. Se a apresentação final do Animal Interior não difere tanto das iniciais (uma vez que se valoriza a resiliência mais do que a capacidade de reinvenção), o filme tampouco busca vias alternativas para representar seus personagens. Caberá ao espectador decidir se esta reincidência representa uma forma de otimismo (a necessidade de continuar tentando, de acreditar em seus sonhos) ou pessimismo (pela constatação de que, apesar dos esforços, o sucesso não aparece). O discurso privilegia, a exemplo dos personagens, a pulsão ao invés da ação, a autoafirmação ao invés da política social.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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