A Transformação de Canuto
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Ariel Kuaray Ortega, Ernesto de Carvalho
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A Transformação de Canuto
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2023
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Brasil
Crítica
Leitores
Sinopse
O nome Canuto é muito conhecido numa pequena comunidade Mbyá-Guarani entre o Brasil e a Argentina. Ele identifica o homem que se transformou em onça e depois morreu tragicamente. Agora a comunidade se reúne para fazer um filme sobre ele.
Crítica
Os limites entre realidade e ficção se confundem durante o desenrolar da narrativa de A Transformação de Canuto, longa dirigido por Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho. Essa união se mostra essencial ao projeto. Ortega, que antes havia codirigido Xadalu e o Jaguaretê (2020), agrega a possibilidade de falar sua própria língua e a dos retratados. Está de olho tanto em si quanto naqueles que inspiraram o projeto sobre o qual se debruça. Tanto é que sua postura enquanto realizador por mais de uma vez irá se misturar com as dos enquadrados pela câmera. Ele é tanto quem olha, como quem é observado. Já Carvalho foi um dos realizadores de Martírio (2016), longa premiado no Guarani, na APCA e no Festival SESC Melhores Filmes – ou seja, um referencial dentro desse subgênero de documentários indigenistas. A ele cabe o distanciamento necessário para não apenas refletir sobre seu objeto de estudo, mas também identificar o que vale se apropriar e aquilo que estimula uma análise mais ampla. A soma dos dois, ainda que nem sempre harmoniosa, é a grande força de um filme não perfeito, mas essencial até mesmo por seus tropeços.
Canuto foi um tipo que marcou a pequena comunidade Mbyá-Guarani, localizada na fronteira entre o Brasil e a Argentina. Lá se entende tanto português quanto espanhol, mas o idioma que praticam é ancestral, que tanto os protege quanto os afasta de uma invasão física e cultural. Canuto, portanto, representa esse esforço em se manter puro, atento à terra e às tradições que deles fizeram o que hoje são: um povo aguerrido, valoroso e ciente do mundo lá fora, e talvez por isso mesmo, cada vez mais voltados para si. Ele não está mais entre os que um dia o conheceram, mas sua história permanece até hoje. Afinal, não é todo dia que se ouve falar do homem que teria não apenas alardeado, mas, de fato, se transmutado em uma onça. O animal selvagem que rosna e luta para se defender dos agressores vindos de longe está vivo no interior de cada um dos pertencentes àquela realidade. Mas somente ele permitiu que essa manifestação também se desse no seu exterior. E o preço que pagou por isso foi alto demais, não apenas para os seus, mas para o seu próprio destino. E é essa a história que agora estes realizadores estão empenhados em resgatar.
Em certo momento, logo no começo da trama, Ernesto se vira para Ariel e pergunta como devem contar a história de Canuto: em um formato tradicional, por meio de entrevistas com aqueles que têm algo a dizer a respeito da figura e da lenda que se formou ao seu redor, ou por meio de uma abordagem ficcional, buscando reencenar momentos importantes da trajetória do biografado. Esse diálogo, no entanto, se dá em frente à câmera, já fazendo parte do filme – ou seja, indo além de qualquer uma das alternativas apresentadas. E este é o caminho que ambos assumem desde o começo. A metalinguagem, como se percebe, é definidor do tipo de filme que se comprometem em realizar. Ariel, principalmente, transita com desenvoltura entre estes dois espectros. Ele é parte intrínseca do percurso. Se Ernesto por vezes surge de forma oblíqua, pelas beiradas, sem nunca se colocar no centro da ação, com o outro é o oposto que se verifica. Tanto é que não causa espanto quando se percebe que, mesmo após tanto tempo dispendido na busca pelos intérpretes de Canuto, será ele que assumirá esse papel.
Este limite entre ficção e realidade é a chave de entendimento de A Transformação de Canuto, um filme que se modifica ao longo do seu percurso tanto quanto o personagem que escolhe para ser o foco de sua atenção. Ariel diz: “não adianta apenas falar, é preciso mostra a fera surgindo nele, as garras afiadas, o andar nas quatro patas. Ele deixa de ser homem e se assume como a onça que tem em si”. E sua certeza é tamanha que até mesmo o espectador mais crédulo se verá atravessado por um instante ou outro de dúvida: teria mesmo isso ocorrido da forma como o cineasta agora descreve? A Ernesto não cabe esse questionamento: ele está preocupado com o filme que estão realizando e em como tornar concreta a melhor versão da lenda. Mas seria essa não mais do que somente isso, um conto que de uma forma ou outra teria sobrevivido ao passar das gerações, ou mais, uma lembrança de tempos remotos quando era este o povo que por estas matas tinha o controle e diante delas demonstrava tanto respeito quanto domínio? Eis uma viagem ao passado e ao presente destes que estão cansados da interferência interna, do homem branco que ganha prêmios com desenhos que nunca se tornam realidade, ao mesmo tempo em que suas preocupações mais urgentes estão na caça do dia seguinte ou no teto que lhes garante segurança e resistência.
Se a dinâmica estabelecida entre os realizadores nem sempre parece ser a mais orgânica, ao mesmo tempo em que por vezes a mão de ambos se mostra pesada demais para abrir mão de passagens que exigem da audiência mais do que parecem dispostas a oferecer como retorno ao conjunto, A Transformação de Canuto se mostra vívido o bastante para ir além destes ruídos e se posicionar como um diferencial no contexto do cinema feito por e para os povos originários. É o olhar de quem por aquilo passou ou pela vida inteira com estas histórias se familiarizou, fazendo uso das ferramentas e dos elementos que a eles fazem sentido, invertendo um jogo que há muito parecia estabelecido, mas que agora, enfim, parte em busca de um equilíbrio. E é nessa ausência de uma idealização artificial que o todo se confirma tão atraente, seja pelo inusitado que ostenta, como pela naturalidade com que abraça aquilo não comum, mas absolutamente passível de identificação.
Filme visto durante o 13º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Cinema de Curitiba, em junho de 2024
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