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Sinopse

Isolado numa floresta, André tenta lidar com as perdas e a nova configuração cotidiana que elas lhe impõem. Após ser atingido por um raio caído do céu, ele é visitado em sua juventude pela ex-mulher a a filha.  

Crítica

Através de uma narração em off, o protagonista descreve um longo pesadelo que teve. Enquanto a imagem está quase completamente escurecida (há poucos indícios de uma floresta sendo desbravada), o homem conta a aventura mar adentro com um amigo. O protagonista cai, quase se afoga, é salvo por pouco. Então decide se lançar no mar perigoso novamente. Desde o início, a paixão pelo desconhecido está intrinsecamente ligada à fascinação pela morte. Quando encontra um possível animal abandonado na floresta, ao lado de sua cabana isolada, André (Enrique Diaz) decide confrontá-lo. Ao subir num rochedo gigantesco, aproxima-se da beira. Quando descobre um curioso homem na floresta (Caio Horowicz), busca se aproximar dele. Em meio ao contato com o espaço selvagem, distante das obrigações cotidianas (o cuidado da filha, as obrigações com a ex-esposa) André se livra a um processo de descoberta de si próprio.

Seria possível argumentar que a trama de A Torre constitui um pesadelo do protagonista, um mergulho por sua psique, seus desejos e seus medos. Concebido pelo escritor e psiquiatra Roberto Freire, o conto “Coiote”, que dá origem ao longa-metragem, se abre a diversas interpretações. A sinopse pode cravar com alguma certeza que o rapaz nu vagando pela floresta constitui a versão jovem do protagonista, porém o diretor Sérgio Borges faz questão de diluir esta possibilidade entre tantas outras: André pode encontrar um outro de si, ou então apenas um desconhecido – uma representação de seu desejo homoerótico. Existe um caráter angelical neste homem que aparece para o protagonista e apenas para ele, no entanto, o possível anjo se converte em diabo, ou mesmo em urubu (ou em coiote, claro) com o desenrolar da trama. A aparição nua representa menos um personagem autônomo do que uma metáfora, um signo. O elenco deste projeto possui o desafio de interpretar figuras fluidas que podem, ou não, existir de fato.

Tamanha ousadia narrativa se torna possível através de uma complexa construção de atmosfera. O impecável trabalho em baixas luzes, com uma imagem granulada e "suja", favorece a impressão de um mistério a ser desvendado, enquanto a trilha sonora assustadora nos aproxima de um terror iminente, enquanto dispersa referências temporais precisas. A montagem abrupta, fazendo a jovem aparição sumir ou retornar de cena a cena, sem explicação verossímil para tal, mergulha o espectador num jogo de adivinhações: afinal, quem constituem esses personagens de fato? Os corpos nus ao lado da cachoeira existem mesmo, possuem uma vida autônoma fora daquele espaço? O que levou André à casa isolada, à vida de reclusão? Como era a vida com a esposa (Maeve Jinkings) antes do divórcio? As perguntas são deixadas em suspenso, visto que Borges privilegia as dúvidas aos esclarecimentos. A narrativa labiríntica oferece ao espectador o prazer de se perder.

Um aspecto particularmente sedutor de A Torre se encontra na combinação fluida, e por isso mesmo improvável, entre a fantasia e o naturalismo. Por um lado, as múltiplas sugestões da montagem sugerem uma narrativa fabular e/ou imaginária. Por outro lado, as imagens de corpos nus caminhando pela floresta constituem o ápice do naturalismo, da exposição real das florestas, do corpo humano, daquilo que não se falseia. A construção e intervenção extremas (a ficção) se combinam com a não-intervenção, a observação plácida do natural (o registro próximo do documentário). Ao contrário de tantos filmes ditos progressistas que ainda hesitam em revelar a nudez masculina – enquanto exploram com frequência a nudez feminina -, este projeto transmite com despojamento os corpos nus de Enrique Diaz e Caio Horowicz. Evita-se tanto o pudor de esconder genitálias atrás de alguma planta ou objeto quanto o prazer autoindulgente de chocar o público pela presença do corpo masculino. Os atores apenas se deslocam, registrados pela simplicidade de uma nudez banal e silenciosa.

Rumo à conclusão, a iminência do terror enfim se concretiza – seria necessário que, em algum momento, a placidez dos corpos se chocasse com os indícios de pesadelos. Seria preciso que um homem devorasse o outro, real ou metaforicamente, pelo sexo ou pela morte. A sedução pelo homicídio/suicídio (aniquilar o outro constitui, de certo modo, uma forma de aniquilar a si mesmo) funciona como elo entre as passagens etéreas deste curto longa-metragem. Borges poderia gastar algum tempo suplementar para explicar a origem desses personagens, para fornecer respostas a tantas perguntas lançadas, ou para garantir alguma forma de recompensa emocional ao espectador. Entretanto, o diretor se mantém fiel à construção de climas, encerrando-se de modo tão potente e ambíguo quanto começou. A Torre se torna uma adaptação fiel do formato do conto, menos pela transposição de acontecimentos do texto original do que pela estrutura elíptica, típica deste formato. O diretor oferece um cinema de sugestões fortes e caminhos múltiplos, na contramão tanto do cinema comercial quanto das obras de arte habituais de festivais de cinema. Existe um senso de incompletude e de indagação que jamais se resolve ao final da narrativa. Talvez seja exatamente isso que o diretor busca: ao trabalhar com a ontologia fotográfica da linguagem cinematográfica, encontrar formas que não limitem a imaginação, mas a expandam.

Filme visto na 23ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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