Crítica


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Sinopse

Primeira pilota de combate da força aérea indiana, Gunjan Saxena teve uma atuação inspiradora no sentido de ocupar espaços na sociedade local que antes eram permitidos apenas aos homens.

Crítica

Esta biografia se inicia com um letreiro explicativo – ou, melhor dizendo, um manual de instruções. Após afirmar que A Tenente de Cargil (2020) narra a trajetória real da piloto Saxena Gunjan, uma extensa explicação acrescenta os seguintes dizeres: “Nenhuma cena deve ser vista como uma recriação de acontecimentos reais. Este filme não alega autenticidade dos eventos retratados. Nós saudamos a força aérea indiana. Viva a Índia!”. O texto sustenta que o machismo foi eliminado nas Forças Aéreas, onde milhares de mulheres trabalham em pé de igualdade com os homens. Poucos projetos se abrem com tamanha confissão de culpa. Ele aborda a vida real de Gunjan ou não? Ou se desenha uma biografia de uma pessoa real, tendo participado de uma guerra real – permitindo, portanto, a aproximação entre as imagens e os fatos -, ou se defende que “nenhuma cena é autêntica”. Os dois posicionamentos se tornam paradoxais, fruto de uma tentativa desastrada de crítica social sem ofender quem quer que seja. O filme passa 110 minutos afirmando a existência do machismo, apenas para frisar que este retrato não corresponde à realidade, e que o machismo já acabou.

O diretor estreante Sharan Sharma converte a história de uma jovem enfrentando inúmeros preconceitos dentro da Força Aérea numa fábula universal sobre a superação de adversidades através da meritocracia. A imagem adota um teor de conto de fadas, muito próximo dos filmes familiares da Disney. Saxena (Janhvi Kapoor) é descrita como uma criança obcecada por aviões: desde pequena, ela sonha em pilotar, desenha aviões, fica embasbacada dentro de uma aeronave. A música de fantasia orna cada uma destas cenas, junto de uma iluminação tão preciosista que beira o irreal. Desenha-se a tese da criança predestinada, movida por um ímpeto único – em outras palavras, trabalha-se com a noção de destino. Ela se torna a única escolhida entre centenas de candidatas (em partes, graças à ignorância sobre política nacional), a figura que dribla as regras por ser mais baixa que a altura mínima permitida. “Quando Deus escolhe alguém para pilotar um avião, quem somos nós para rejeitá-la?”, admite o oficial do processo de admissão. Pronto: Saxena foi escolhida por Deus. O instante em que a jovem piloto é convocada para atuar na Guerra de Cargil, em 1999, combina câmera lenta, trilha sonora grandiloquente e a mulher correndo sozinha contra o pôr do sol, até o fundo de um galpão gigantesco. Ela não se diferencia tanto de uma Capitã Marvel prestes a salvar o mundo.

Segue-se uma demonstração do machismo que a jovem precisou enfrentar. Parte considerável da trama se concentra na rotina de humilhações, grosserias e brutalidades às quais foi submetida. Sharma acredita que sua heroína se torna ainda mais virtuosa por ter sofrido tanto. Há um caráter perverso na admiração da dor alheia, ou ainda na transformação de um caso excepcional numa lição de vida à altura de todos. Assim como nos programas vespertinos de televisão, onde se aplaudem vítimas de câncer, ou na famosa campanha de George W. Bush, quando ele aplaudiu efusivamente a eleitora que precisava de três trabalhos para sobreviver, A Tenente de Cargil acredita que a tortura psicológica e o assédio moral acabam sendo benéficos, porque fizeram de Saxena uma mulher ainda mais resistente e virtuosa. “Há males que vêm para bem”, poderia dizer o filme. Ao invés de enxergar o inóspito ambiente das forças aéreas com repulsa, a direção encontra neste cenário uma oportunidade ainda mais preciosa para a personagem provar o seu valor. De certo modo, tolera o preconceito por acreditar que a protagonista era capaz de superá-lo. “Deus não dá um fardo maior do que você pode suportar”, diria a leitura cristã. Ao final, a protagonista merece este sofrimento, colocado em seu destino. Há algo mais impiedoso que transformar a adversidade num presente do destino?

Obviamente, o caráter contestável se dilui em imagens de teor agradável, com uma protagonista resiliente e gentil, instantes calorosos de afeto com o pai, e de embate ferrenhos com os superiores homens. É muito fácil se identificar com a garota destemida, enfrentando vilões clássicos concebidos exclusivamente para prejudicá-la. O roteiro adota a montanha-russa de lágrimas e conquistas: após uma dura derrota, a protagonista conquista um feito inédito, para ser derrotada novamente e se sobressair mais uma vez. A produção da Netflix dispõe de orçamento respeitável para criar cenas impactantes de guerra, muitos efeitos especiais para o sobrevoo a bordo de um helicóptero, além de instantes com dezenas de protagonistas. O resultado se assemelha a um tipo de cinema praticado três décadas atrás em Hollywood, quando a trajetória atípica de algum herói era servida como modelo de inspiração a qualquer um. Agora, invertem-se os gêneros dentro de uma estrutura idêntica. Ao menos, é louvável a decisão do filme de jamais oferecer um par romântico a Saxena, nem introduzir o desejo de casamento ou filhos em seu caminho. A única motivação da piloto se encontra no sucesso profissional – e, consequentemente, em se provar digna aos olhos do pai. Valoriza-se a família, no entanto destaca-se ainda mais a busca dos sonhos.

Por fim, o discurso possui alcance limitado. Primeiro, por negar o próprio machismo que afirma durante toda a história, no covarde letreiro inicial. (Nota aos criadores: é impossível fazer política de fato sem cutucar feridas). Segundo, por acreditar que as transformações sociais decorrem de uma vontade individual. Saxena superou o machismo na corporação por tentar muito, por insistir após cada dificuldade. Aparentemente, este caso excepcional extinguiu o machismo de séculos num passe de mágica, visto que a narrativa salta do caso Saxena ao presente, onde não aparenta haver desigualdades. A narrativa do esforço pessoal ignora o fato que as mudanças também precisam vir de fora: é necessário promover uma guinada na política, nas leis, nos cargos de chefia, na mentalidade das famílias e das novas gerações. Torcer por uma tomada de consciência repentina através do afeto se torna tão conformista quanto ingênuo. Recentemente, Green Book: O Guia (2018) e Histórias Cruzadas (2011) pretendiam superar o racismo pela amizade, assim como o filme indiano visa ultrapassar o machismo por um esforço sobre-humano e penitente. Ora, sugerir que tais transformações não aconteceram até agora por questão de esforço equivale a desresponsabilizar os reais agentes do preconceito, enquanto se culpabiliza os desprivilegiados por sua “falta de vontade”. Bastava se esforçar um pouco mais, entenderam, negros, mulheres e gays? Tentem com mais empenho na próxima vez.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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