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Após o golpe militar de 1973, que depôs Salvador Allende da presidência do Chile, o cineasta Raoul Ruiz se viu, como tanto outros artistas locais contrários ao regime ditatorial, obrigado a deixar seu país, passando quase duas décadas exilado na França. Com o fim da Era Pinochet, e o restabelecimento da democracia, Ruiz pôde finalmente voltar a filmar em território chileno, fazendo-o já em novembro de 1990. Agora, vinte e sete anos depois, o material rodado ao longo de sete dias, que havia permanecido intacto como parte de um projeto inacabado, ganha forma em A Telenovela Errante, sendo editado e finalizado pela diretora Valeria Sarmiento, viúva de Ruiz, que já havia exercido a função de montadora em trabalhos anteriores do marido, como Mistérios de Lisboa (2010), e também assumido a direção de Linhas de Wellington (2012) – em razão da morte do cineasta, ocorrida durante o período de pré-produção do longa.

Dividido em sete capítulos, cada um referente a um dia de filmagem, o filme, como já sugere o título, se apresenta como uma sátira à linguagem da teledramaturgia, originalmente envolvida por um conceito mais complexo, no qual a realidade chilena dava lugar à ficção da programação televisiva, sendo dividida em quatro “províncias audiovisuais” tomadas pela ameaça de uma guerra iminente. Ainda que o contexto social/político se faça presente, como em toda a obra de Ruiz, essa proposta conceitual idealizada inicialmente não chega a ser plenamente desenvolvida, pois é mesmo a exploração, em chave paródica, do formato das novelas que domina a película. Assim, o imaginário surreal típico do realizador encontra espaço para aflorar, expondo a busca por uma comicidade calcada no absurdo, evidenciada, particularmente, nos capítulos iniciais.

O primeiro deles sintetiza de modo exemplar o humor do longa, mostrando o diálogo entre um casal apaixonado que evolui para a revelação de um triângulo amoroso envolvendo dois irmãos. O texto repleto de tiradas velozes e insólitas brinca com os estereótipos e clichês de um conflito dramático tão recorrente nos folhetins televisivos, sugerindo também a ideia de que os personagens têm consciência sobre fazerem parte de uma encenação – através do comentário da mulher, repetido diversas vezes, lembrando ao amante sobre o fato de estarem sendo observados. Nos segmentos seguintes, Ruiz aproveita para também realizar um pastiche de gêneros cinematográficos variados, como o film noir. É o que ocorre no hilário capítulo em que sucessivas duplas de assassinos de aluguel perpetuam um ciclo contínuo de mortes regado à paranoia política.

Aos poucos, o tom cômico é embebido em tintas mais sombrias e a narrativa se torna cada vez mais labiríntica. O universo criado por Ruiz ganha em densidade onírica, e a tarefa de romper a teia alegórica presente nos capítulos derradeiros não se mostra tão simples. Ainda assim, as percepções do cineasta sobre a sociedade chilena da época – o temor da elite a respeito dos ideais da esquerda, o medo, ainda latente em grande parte da população, gerado pela opressão e violência do governo militar – irrompem em meio a uma coleção de recortes, moldados pela fantasia, de memórias afetivas – a memória musical, por exemplo, surge como um elemento de grande destaque, com o rádio dividindo espaço com as televisões como principal objeto de cena, trazendo antigas canções e também informes jornalísticos.

Ao final, A Telenovela Errante se encaminha para um episódio críptico, quase indecifrável, mas também aquele no qual o arrojo visual de Ruiz se manifesta com maior intensidade, tratando dos fantasmas de um passado que ainda se confundia com o presente, de traumas que apenas começavam a ser superados na esperança de um recomeço. Sarmiento realiza sua colagem mantendo-se fiel a esse sentimento de incerteza e desconfiança, quebrando-o apenas no último instante, ao inserir um fragmento de recordação afetiva pessoal: a imagem do marido decretando o término das filmagens em 1990. Uma conclusão singela e calorosa para uma obra que, mesmo imperfeita, reflete a inventiva visão de Ruiz, mostrando como seus laços com o Chile permaneciam estreitos, apesar da distância imposta a contragosto, e servindo também como uma merecida homenagem.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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