Crítica

Antes de se tornar cineasta, Billy Wilder foi jornalista. Não é muito difícil saber a opinião dele a respeito da profissão, para isso basta assistir A Montanha dos Sete Abutres (1951), um de seus filmes mais cultuados, e este A Primeira Página (1974). Embora aparentemente distintos – pois um dramático e o outro cômico – são trabalhos nos quais transparece uma visão bem clara acerca da função e de seus meandros. Em ambos, a ética é um conceito bastante elástico, sobretudo quando sua integridade pode atrapalhar o aumento das tiragens. No filme estrelado por Jack Lemmon e Walter Matthau, tudo começa com um jornalista em vias de desistir do lamaçal diário, das horas e horas de plantão, das ausências nas festas familiares e da convivência com os colegas que estão mais preocupados com as próprias carreiras. Ele quer casar, sossegar num emprego de ganhos altos no ramo publicitário.

A notícia que movimenta então as redações é um enforcamento. Os jornalistas vistos na sala de imprensa só sabem jogar e beber enquanto esperam a carniça como corvos. Wilder não poupa na ironia, vide também os fatos tratados de maneira muito distinta (quando não completamente distorcida) de profissional para profissional. Uma fuga pode ser tanto épica quanto prosaica, dependendo do relato, do ponto de vista conveniente. Ao passo em que acompanham a calmaria da véspera de mais essa execução, os homens da imprensa se despedem de Hildy (Lemmon), o tal sujeito boa-praça que, a despeito da vocação, pretende cair fora. Por sua vez, o editor Walter (Matthau) será capaz de tudo para manter seu melhor funcionário no jornal.

Os diálogos de A Primeira Página são afiados, no melhor estilo Billy Wilder. Dentro da trama, tudo parece conspirar para que Hildy não largue a profissão. Enquanto a cidade toda procura pelo fugitivo, eis que ele (e consigo o tão ambicionado furo jornalístico) cai no colo do repórter que já está no apagar das luzes. A sedução da exclusividade ameaça dar um nó na cabeça desse homem dividido entre a antiga e a nova paixão, ou seja, o jornalismo e a noiva. Em A Primeira Página ninguém é santo ou ingênuo, todos são vistos no seu aspecto mais ridículo, ainda que não sejam vulgarizados. Senão vejamos como exemplo o psicólogo que lá pelas tantas vai atestar a sanidade do prisioneiro. Ele é quase uma caricatura que relaciona tudo na vida do paciente a possíveis traumas familiares do passado.

A Primeira Página é outro dos filmes obrigatórios de Billy Wilder, não apenas aos profissionais ou estudantes de jornalismo, mas àqueles que se interessam pelas complexidades de uma trama na qual a ética está sempre na berlinda. O diferencial aqui é o bom-humor, a leveza com que se destilam observações incisivas a respeito da atividade que integra a quimera há algum tempo denominada “quarto poder”. Wilder sabia fazer humor e zombar de seus personagens, sem por isso expô-los a humilhações, ou torná-los apenas modelos de teorias. Aqui prevalece o olhar afetuoso, mesmo aos mais canalhas. A Primeira Página pode não estar no nível de Quanto Mais Quente Melhor (1959) ou de Se Meu Apartamento Falasse (1960), para citar apenas duas de suas comédias geniais, mas certamente é mais que digno do legado de seu criador, um dos maiores artistas da Hollywood de outrora.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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