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Sinopse

Aos 13 anos, Joana fica intrigada com o fato de sua tia-avó ter morrido aos 70 anos sem nunca ter namorado. Enquanto experimenta as primeiras paixões e desejos, sofre com a influência conservadora e religiosa da cidadezinha onde mora.

Crítica

Um casal idoso fazendo sexo. A imagem não carrega qualquer forma de surpresa ou espetáculo. Quantas cenas de sexo entre pessoas de mais de 70 anos você já viu no cinema, sem esconder a nudez com um lençol, nem demonstrar vergonha do envelhecimento? Em paralelo, uma pré-adolescente começa a descobrir a vontade de ter contato íntimo com alguém. Joana (Letícia Kacperski) sequer sabe como se beija, no entanto a amiga fica horrorizada quando descobre que ela ainda não se masturba. A Primeira Morte de Joana (2021) se debruça sobre duas faixas etárias pouco representadas em termos de manifestação da sexualidade: a infância e a velhice. Ambas são espelhados: a menina de 13 anos fica fascinada pela vida sexual da avó, e pela ausência de namorados da falecida tia-avó. A qual das duas esferas ela pertenceria? Entre as pulsões desajeitadas da garota (ela simula um beijo no espelho) e o corpo da senhora idosa despudorada, andando pelada pela casa, existe a mãe de Joana. A mulher adulta manifesta os sentimentos mais contidos, porque castrados pela religião: esta figura conservadora flerta discretamente com um colega, sem permitir os avanços dele. O coração pulsa mais forte para a criança e a avó, enquanto a geração intermediária se prende a um ideal de “elegância”, em suas palavras, aplicado às esposas recatadas e do lar.

Neste drama, a diretora Cristiane Oliveira aborda o peso das convenções sociais afetando mulheres de quaisquer idades, religiões e orientações sexuais. O cerceamento dos comportamentos se aplica a todas: Joana é acusada de passar tempo demais com a melhor amiga, mas a mãe detestaria vê-la na companhia de meninos. Esta última usa roupas discretas e evita investir no romance por medo da repercussão no vilarejo. A falecida tia-avó tem sua misteriosa vida afetiva destrinchada pelos habitantes: ela seria assexuada, covarde, lésbica? Neste contexto, mães, esposas e filhas possuem deveres e direitos, além de medidas rígidas: ela será julgada por gostar de sexo em excesso ou falta, por sair com vários homens ou com nenhum, por ser próxima das amigas ou dos amigos. Já os maridos, pais e meninos na escola ganham passe livre para serem ausentes, inacessíveis e agressivos – ninguém os pune. O filme retrata especificamente o machismo no sul do país, embora os códigos de conduta pudessem ser aplicados ao resto do país, e a outras nações predominantemente cristãs. A cineasta evita demonizar ou apontar dedos a culpados: o olhar continua plácido, cúmplice, acompanhando o mundo pela perspectiva atônita de Joana, ao invés de observar este microcosmo de fora, por uma perspectiva acusatória. Antes de mergulhar nas causas da desigualdade de gênero, o discurso se dedica a bem identificá-lo.

Em contrapartida, a mise en scène se mostra bastante engessada. É louvável a busca por uma obra de contemplação, movendo-se através de sentimentos íntimos ao invés de grandes reviravoltas. No entanto, as cenas possuem dinâmica limitada, algo que prejudica a montagem - Tula Anagnostopoulos aparenta ter poucas opções a partir das quais trabalhar. Muitas vezes, os personagens esperam o sinal de “ação!” para começarem a desempenhar alguma atividade em cena. A direção de fotografia de Bruno Polidoro, valorizando os tons azuis da casa e efetuando precioso trabalho com baixas luzes, acaba prejudicada por cenas esticadas, que falham na tentativa de aprofundar os personagens e sugerir novas formas de compreensão – vide a extensa contagem dos comprimidos, a ida ao carro para buscar cucas e o livro Anarquistas, Graças a Deus! (1979) apresentado longamente, para surtir impacto modesto na sequência. A poesia buscada nas águas esverdeadas e na sombra da avó projetada na cama se perde em meio ao refinamento limitado de elipses e dos símbolos – o bonequinho da amiga na praia, a asa delta no céu. Ainda que dirigidas com carinho, as jovens atrizes possuem expressividade moderada, seja pela disposição das cenas – o objetivo de diversas cenas soa incerto –, seja pelos diálogos escritos demais, estranhos à embocadura.

De fato, o texto escrito para as crianças provoca incômodo diante de interjeições como “Já sei!”, “Boa ideia!”, “É isso!” e outras expressões mais apropriadas aos seriados infantis do que a um drama realista. O elenco desperta a impressão de não ter incorporado organicamente o texto, demarcando em demasia as vírgulas, as pausas e os longos respiros, como se estivesse lendo o roteiro: “Ano passado (silêncio), quando eu quis namorar (silêncio)...”, ou “A gente se fala todo dia pela Internet, mas... (longo silêncio)”. Fica a impressão de que o elenco foi impedido de brincar com as palavras, reformulá-las à sua maneira, propor novas versões que lhes parecessem fluidas. Ainda mais questionáveis são as cenas em que Joana aparece perto de uma porta ou janela aberta, flagrando segredos e escutando as conversas no instante exato de alguma confissão importante. A adolescente testemunha confissões do pai de Carol; a briga do pai da amiga com a mãe; o sexo da avó; a preocupação da professora sobre o sumiço da colega; a conversa da mãe com o pretendente em frente da casa. A narrativa explora um timing conveniente, fruto de um recurso artificial para oferecer explicações à protagonista – e ao espectador, por extensão. A vontade de transformar a garota nos “olhos da casa” se resulta num facilitador de conflitos.

Ressalvas à parte, A Primeira Morte de Joana se insere na produtiva safra de dramas nacionais que enxergam na juventude feminina um motor de estranhamento face ao mundo adulto de classe média. Ele traz certa semelhança com As Duas Irenes (2017), Meio Irmão (2018) e Irmã (2020) na busca por uma coming of age story tipicamente brasileira. Estas obras privilegiam a pequena aventura minimalista, o senso de vazio e de desorientação diante das regras bem estabelecidas dos pais, avós e patrões. Trata-se de obras naturalistas e poéticas, propensas às metáforas e símbolos da natureza: o desfiladeiro de As Duas Irenes, o barranco de Meio Irmão, o lago de Irmã, o buraco da árvore em A Primeira Morte de Joana. Tamanho respeito e receio em agredir os personagens, o ritmo e o espectador produz um projeto educado, polido, e também acanhado em termos de narrativa e discurso. Sem dúvida, a heroína possui muitos desejos e dúvidas represados, porém a cineasta poderia brincar com o trabalho da câmera, as ambiguidades dos enquadramentos e do espaço fora de quadro, com a representação da libido da adolescente. Falta sangue correndo nas veias de filha, mãe e avó plácidas demais, ao lado de professores apáticos. Mesmo a cerimônia da umbanda se torna fria, distanciada. Para cada cena potente (as pás da torre de energia eólica projetando sombras na estrada), existe outra que mereceria uma proposta diferente de enquadramentos e montagem (a briga das crianças com o cata-vento de plástico, em sala de aula).

Filme visto online no 49º Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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