Crítica


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Sinopse

Moradora dos alpes suíços, Anna se apaixona pelo forasteiro Marco. No entanto, a felicidade deles não dura muito, pois após o casamento, Marco é diagnosticado com uma doença grave. Aos poucos, o tumor no cérebro faz com que o rapaz tenha atitudes muito diferentes daquelas que Anna conhecia.

Crítica

Um Pedaço de Céu (2022) é um filme fascinado pelos conceitos de perenidade e permanência. Ele lida com o medo das coisas que terminam, seja pela perda de uma pessoa, de um animal, ou até de uma lembrança. A religião cristã afirma que o casamento deve ser eterno, na saúde e na doença, até que a morte os separe. O ideal do amor romântico prega um laço infinito, à prova de obstáculos — aliás, quanto maiores as dificuldades superadas, mais intenso seria o sentimento, o que reforça sua vocação ao martírio. Levando um relacionamento feliz, o casal formado por Anna (Michèle Brand) e Marco (Simon Wisler) começa a questionar o futuro: “E se tudo isso for apenas um sonho?”, ela dispara. “Acho que isso não pode ser real”, ele pondera. Antes do casamento, os vizinhos buscam garantias de que este é o homem com quem deseja conviver para sempre, afinal, ela também pensava isso sobre os anteriores. Anna se cala. Que certeza pode ter alguém das transformações futuras? Que garantia ela pode fornecer de ainda estar apaixonada daqui a um ano, dez anos, trinta anos? Um coral de vocação religiosa (que também lembra os coros de tragédias gregas) prepara o espectador para um teste destes conceitos, que logo virá: Marco é diagnosticado com um tumor cerebral e começa a manifestar comportamentos muito distintos daqueles pelos quais a garota se apaixonou.

Seria possível apontar um sadismo deste procedimento, ou então a frieza normalmente atribuída aos cineastas austríacos, embora Michael Koch, no caso, seja suíço. Ele parte da felicidade plena para insinuar que tal euforia tem os dias contados. Pior do que isso, faz com que os personagens passem do céu ao inferno, sem meios-termos. Põe-se à prova a virtude da esposa carinhosa, em paralelo à humanidade do sujeito transformado. Felizmente, o olhar da direção foge de qualquer prazer com o sofrimento alheio. Michèle Brand compõe a mulher de maneira estoica, trocando as catarses por uma aparência de inquietação constante. Simon Wisler tampouco assume a postura da vítima, nem mesmo do agressor em sequências de perturbadora carga moral. O filme atenua os extremos e retira o sentimentalismo do debate. Em consequência, o espectador não será comovido ou provocado numa chave epidérmica, e sim testado em suas convicções — ao invés do apelo às emoções, provoca-se o intelecto. Koch induz a reflexão por meio de metáforas: os bois abatidos sugerem a fragilidade da vida, enquanto as pedras dos Alpes, que ocupam a primeira e a última cena, aludem àquilo que resta inalterado durante séculos. Em meio à crise, Anna observa a filmagem de um romance indiano nas proximidades, caso em que a paixão se traduz em dança, cores, sorrisos — tudo o que lhe falta no momento. A mulher enfrenta, neste instante, a frustração pela distância de um ideal prometido.

A linguagem é embalada por procedimentos formais tão coerentes quanto rígidos. Um Pedaço de Céu trabalha com um formato mais próximo do quadrado — a janela 1 x 1.66 -, incomum aos retratos em grandes paisagens, quase sempre em enquadramentos fixos nos quais os personagens ocupam os terços exatos da imagem. Abraça-se com prazer um aspecto posado, artificial, seja pelo coro entoando sua melodia diretamente à câmera, seja pelo reencontro de marido e mulher, filmado através da janela dos fundos da casa, quando ambos param no reflexo exato dos vidros. Nas sequências de maior emoção, a câmera desvia o olhar: durante a troca de alianças no matrimônio, o espectador acompanha os músicos entediados no lado de fora, esperando a vez de subir ao palco; e para o anúncio da doença grave, permanecemos focados no rosto da garota, ao invés do marido doente. Quando as emoções ameaçam tomar conta do rosto, sem problema: basta seguir a protagonista pela nuca. Para evitar que a identificação opere via chantagem emocional, o ponto de vista se prende ao olhar da jovem garçonete, ao invés do esposo. Ou seja, não somos convidados a sentir pena por ele, apenas acompanhar os dilemas dela, obrigada a decidir se insiste nessa união. Ao invés de enxergar nesta história um episódio excepcional, Koch estende o conflito moral ao espectador: o que você faria, no lugar dela?

O longa-metragem oferece uma experiência contida, tanto no uso do cinema quanto na discussão a respeito do amor eterno. “Eu não quero morrer”, reclama a filha do casal durante a noite. Ao invés de acalmá-la, assegurando de que isso não acontecerá, a carinhosa, porém implacável mãe garante que o término ocorrerá, sim, independentemente de nossa vontade. “E se o pai morrer?”, questiona em seguida. O drama capta muito bem nossa dificuldade ocidental de encarar o tema da morte de maneira frontal e leve. Faltam palavras, falta um senso de compreensão do que significa este fenômeno tão natural. Anna vive cercada por bois abatidos, porém se vê incapaz de incorporar esta compreensão à vida privada. De certo modo, sonhamos com uma eternidade arrogante e impossível, que ao menos nos impede de pensar em nossa finitude. Que a vida seja eterna enquanto dure, poderia ter dito o poeta. Os cenários brancos, frios, impossíveis de modificar ou controlar, servem de lição aos protagonistas: a natureza será sempre mais forte, e terminará por aniquilar a todos que amamos. O encontro deste discurso duro com a história de amor romântico produz a beleza e a perversidade da obra.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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