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Sinopse

Na noite de 2 de março de 1953, um homem está morrendo. Um golpe terrível está destruindo o seu corpo. O homem é Joseph Stalin, secretário-geral da URSS. Os próximos dias reservam luz sarcástica sobre a loucura, depravação e desumanidade do totalitarismo. Dias que verão os homens que o cercam lutarem para herdar seu poder supremo.

Crítica

O rei está morto. Longa vida ao rei. Se assim diz o ditado, por que seria diferente na ficção? Ao menos é o que verificamos ser a lei vigente em A Morte de Stalin, comédia satírica que, curiosamente, é inspirada em um episódio verídico. Mas não espere encontrar aqui um humor escrachado, óbvio ou forçado. A graça está no absurdo, no exagero verificado por situações que, de tão inacreditáveis, só poderiam, mesmo, ser reais. Um equilíbrio difícil de ser encontrado, mas que aqui se apresenta em um perfeito balanço. Mérito principal do diretor e roteirista Armando Ianucci, que além de ter sido indicado ao Oscar pelo roteiro do pouco visto Conversa Truncada (2009), é responsável por um dos melhores programas da televisão mundial nos últimos tempos: Veep (2012-2017), série vencedora de 17 Emmys!

Josef Stalin, um dos mais notórios líderes da União Soviética, morreu no dia 05 de março de 1953. Essa data é reconhecida por sua importância histórica, mas o que aconteceu nas horas antes ao seu falecimento e, principalmente, nos dias seguintes à fatalidade, até a cerimônia do seu funeral? É neste terreno em que se desenrola a trama de A Morte de Stalin. O despropósito que cercava a rotina de medo e cerceamento das liberdades impostas por Stalin (Adrian McLoughlin) é bem ilustrada em um prólogo curioso: enquanto a Rádio Nacional de Moscou transmitia um concerto lírico, auxiliares do ditador entram em contato com o diretor da emissora (Paddy Considine) solicitando uma cópia da apresentação, pois o governante desejava ouvi-la em outro horário. Como a performance foi ao vivo, o funcionário em desespero se vê obrigado a impedir que os músicos e o público se retirem, exigindo que o programa seja repetido para que, enfim, possa ser gravado. A pianista (Olga Kuylenko) inicialmente se recusa, mas acaba cedendo diante de um novo pagamento. No entanto, assim que a gravação é entregue ao oficial encarregado de levá-la ao Palácio do Governo, a artista acrescenta um bilhete escrito a próprio punho. E assim o futuro da nação é traçado.

Em poucas palavras, podemos dizer que será a leitura deste recado que levará Stalin a um infarto (as condições são hilárias), porém é justamente após esse desenlace que o surreal toma lugar. Seus principais comparsas – o vice-presidente (Jeffrey Tambor) e ministros mais próximos (Simon Russell Beale, Steve Buscemi, Michael Palin, entre outros), começam, entre dissimulações e intrigas de bastidores, um incrível embate para ver quem é o mais rápido em assumir o poder. Soma-se a essa equação os dois filhos do recém-falecido – o instável Vasily (Rupert Friend) e a manipuladora Svetlana (Andrea Riseborough) – e um marechal sedento por sangue (Jason Isaacs), e o caos estará instaurado: a cada minuto, assim como numa partida de xadrez, a situação pode ser reconfigurada por completo, e aqueles que há pouco estavam cantando vitória logo se verão com uma espada afiada apertando seus pescoços.

Baseado nas histórias em quadrinhos de Fabien Nury e Thierry Robin, A Morte de Stalin recebeu um roteiro escrito a oito mãos – além de Iannucci, também David Schneider (Todos os Homens da Rainha, 2001), Ian Martin (também premiado pela série Veep) e Peter Fellows (da série Prime Cut, 2017-2018). Porém, tamanha coesão percebida em cena não denota uma mistura tão expressiva de perfis, mas, sim, uma impressionante sintonia entre ambientações e diálogos. Composta por uma estrutura quase teatral – da rádio vamos para o palácio, e em seguida rumo à sede do governo – com poucos cenários e escassos movimentos, quase toda a ação se dá através de diálogos rápidos e afiados, que tanto exigiram de seus atores que somente intérpretes acostumados com esse tipo de desafio poderiam ter entregue a excelência que se percebe em cena. Não por acaso, Beale tem experiência shakespeariana, Buscemi ganhou o Globo de Ouro como protagonista da série Boardwalk Empire (2010-2014), e Palin era, nada menos, do que um dos integrantes originais do Monty Python. E o show, como era de se esperar, está quase que integralmente nas mãos – e nos rostos – deles.

A Morte de Stalin, no entanto, é também um filme perigoso. Afinal, o humor que exercita se desenvolve sobre uma tênue linha de violência e perspicácia. Não será de se estranhar caso um espectador menos atento, por exemplo, decida tirar tais leituras como uma interpretação literal dos fatos, desprezando a fina ironia e ignorando a acidez do deboche praticado. Para estes, o que se poderá perceber é quase uma promoção dos desmandos de um déspota, a luta desesperada pelo poder e o uso do povo em nome de egos inflados e diretrizes há muito abandonadas – nada mais longe da verdade, é claro, além de ser justamente o foco da crítica praticada. Em tempos como os que estamos vivendo, até para se divertir é preciso ser sábio, e reconhecer o que está nas entrelinhas – e por baixo dos discursos prontos – não mais é uma vantagem, mas, mais do que nunca, um manual de sobrevivência.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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