Crítica


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Sinopse

Quando tem a casa invadida por assaltantes, um jovem casal sofre uma experiência traumática. Andrey é ferido e Olya perde o bebê após a tentativa de estupro. Sentindo que o relacionamento está se desfazendo em virtude do ocorrido, Andrey recorre a uma mulher misteriosa, capaz de fazer Olya se esquecer do trauma. No entanto, os efeitos colaterais podem ser ainda mais graves.

Crítica

A princípio, A Mão do Demônio (2020) investe no terror psicológico onde os monstros existem dentro dos próprios personagens. Após uma invasão doméstica seguida de ameaça de estupro por parte dos criminosos, Olya (Marina Vasileva) perde o bebê e se afasta cada vez mais do marido Andrey (Semyon Serzin). Ainda que os vultos pela casa e as figuras masculinas nos corredores sejam ilusórios, eles decorrem de um trauma real. Não é difícil se identificar com a jovem esposa apática, nem com o marido, buscando desesperadamente alguma maneira de retornar ao bom relacionamento de antes. A base deste filme de terror se encontra no drama, a exemplo das melhores obras do gênero. O roteiro oferece um dispositivo funcional em termos de criação de suspense: a partir do momento em que Andrey recorre aos serviços de uma mulher misteriosa, cujos cogumelos proporcionariam o esquecimento de fatos pontuais, nota-se o perigo de que Olya esqueça, entre outros, o próprio marido. Que direito ele teria de apagar uma lembrança negativa da mente de outra pessoa? Isso seria uma invasão ou uma proteção? Seria um gesto de amor ou de abuso, a aposta neste “brilho eterno de uma mente sem lembranças”?

Infelizmente, passado o terço inicial, o filme se transforma por completo. Entram em cena flashbacks medievais, casas escondidas, fantasmas de proprietários passados, pessoas convertidas em cavalos, viagens no tempo, lamas movediças, novos invasores domésticos, estufas criminosas, personagens duplicados, mudanças de identidade, crianças servindo de guias místicos, apresentações musicais etc. Os rumos da trama são impensáveis – apesar de o roteiro ser de autoria exclusiva do diretor, desperta a impressão de um texto trabalhado a diversas mãos, ou de um projeto maior (uma série, por exemplo) comprimido no formato do longa-metragem. Aleksey Kazakov demonstra tamanho prazer em introduzir novos personagens e elementos que se esquece dos anteriores: a temática da sexualidade, fundamental à primeira parte da narrativa, é esquecida a seguir, assim como o luto pelo aborto espontâneo. Conforme se desenvolve, o terror abandona a psicologia do casal para investir nos monstros e fantasmas acessórios, que passam a monopolizar a história. Em outras palavras, o projeto parte de um interesse genuíno por indivíduos atormentados por monstros, até se apaixonar mais pelas criaturas do que pelos seres humanos.

Em termos de produção, A Mão do Demônio apresenta um cuidado excepcional na criação de cenários, figurinos e iluminação. Teria sido fácil exagerar na maquiagem, na construção assustadora de Ved’ma (Aleksandra Revenko), nos sustos e outros recursos facilitadores. No entanto, o apartamento tão amplo quanto decadente onde passam a viver Aleksey e Olya carrega um aspecto pantanoso, sendo repleto de plantas e luzes neon, algo distante do imaginário das mansões fantasmagóricas. A principal antagonista limita-se ao olhar soturno e às roupas sedutoras, enquanto os fantasmas representam pessoas comuns. Ao mesmo tempo, o cenário contemporâneo, com música eletrônica, cogumelos psicotrópicos e agências hipster de arquitetura distanciam este universo das tramas aristocráticas a respeito de casas assombradas por vilões do passado. Kazarov demonstra ambições estéticas notáveis, principalmente ao atravessar duas linhas temporais em plano-sequência e se aproximar do prédio principal, de fora da construção, até atravessar as janelas e descobrir os fatos ocorridos dentro do apartamento. Para um projeto de horror, existe uma quantidade expressiva de cenas diurnas e externas, quando o filme revela um inesperado viés turístico, exibindo as belas paisagens e construções de Moscou.

Caso tamanho apuro de imagem servisse a um roteiro mais enxuto e centrado, resultaria num belo exemplar de terror russo, a exemplo do recente A Noiva (2017), por exemplo, também preocupado com as relações de gênero entre tradição e modernidade. Ora, após sair dos trilhos, a trama nunca retorna ao bom caminho. Os extensos flashbacks proporcionam uma ligação fraca entre os dois períodos, enquanto os símbolos (cavalos, cogumelos, vestidos vermelhos) se multiplicam sem necessariamente se conectar. A narrativa se aproxima do funcionamento de um pesadelo embaralhado e absurdo, mais propenso a despertar sensações do que reflexões. A direção oferece uma bela embalagem para pouco conteúdo, ou ainda um exercício de vaidade do cineasta buscando comprovar a sua capacidade de efetuar bom uso de efeitos visuais, contorcer a câmera em ângulos inesperados e propor novos símbolos ao terror convencional. De fato, nada nos cavalos se afogando na lama de um apartamento e nas dezenas de vasos de planta relembra o horror convencional. No entanto, a diferenciação não pode constituir um valor em si: de nada serve tamanha inventividade perdida numa narrativa mal desenvolvida.

A versão brasileira tampouco ajuda a experiência. Primeiro, o filme russo é dublado em inglês e legendado em português ao mesmo tempo. A distribuidora está acostumada a lançar este tipo de cópia onde as legendas não condizem com a voz, que não condiz com a cultura original. Bruxas e feiticeiros podem invadir a trama, mas a principal monstruosidade ainda se encontra numa Moscou onde as pessoas leem em russo, falam em inglês e pronunciam nomes como Kirill, Konstantin e Devochka com sotaque norte-americano. O título nacional, A Mão do Demônio, sugere uma história de possessões e exorcismos, despertando falsas expectativas. A obra possui dois títulos originais muito diferentes, tanto Mara quanto Efeito Colateral – este último, servindo de título internacional. Para piorar, na versão exibida à imprensa, o som começa a sair de sincronia progressivamente. No terço final, as bocas russas se movimentam em tempo totalmente distinto das falas em inglês e das legendas em português, tornando ainda mais difícil a compreensão da história rocambolesca. Na conclusão, pouca coisa faz sentido entre as transformações mágicas da trama, as idas e vindas no tempo e o som dessincronizado. Para uma obra de cultura distinta, dotada de elementos inovadores para o público acostumado ao horror norte-americano, teria sido fundamental preservar ao máximo as qualidades (linguísticas, sonoras, simbólicas) do original.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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