Crítica

A Luneta do Tempo inicia com uma das melhores e mais impressionantes sequências do cinema nacional. Tendo em vistas os 15 anos necessários para finalizar o projeto e a estreia de Alceu Valença, quem sequer é da área, na direção,  o longa chega para ser a surpresa positiva do cinema brasileiro no ano.

Imagem espelhada da persona do diretor, o filme reflete Valença em todos os seus aspectos, demonstrando que não houve qualquer preocupação em separar o homem da criação. A prova de tamanha onipresença está no roteiro, desenvolvido por núcleos – por vezes excessivamente esquemáticos e fragmentários –, com avanços que nos remetem mais à música do que ao cinema.

A história é apresentada em dois momentos. O primeiro, conta o embate entre a polícia, liderada por Antonio Severo, e o movimento de Lampião. O núcleo é responsável pelas cenas de ação e pela morte que contaminará os personagens em busca de vingança. O segundo, centrado na relação de Virgulino e Maria Bonita, orquestra situações de um épico-poético inusitado, mas que encontra espaço em um filme inegavelmente não tradicional.

As cenas de ação impressionam pela qualidade do trabalho no espaço cênico, especialmente pela noção dos atores em ocupar e desenvolver a movimentação. O cinema brasileiro, que há muito foi dado a brindar o público com cenas de perseguição e aventura fracas e até mesmo constrangedoras, tem no trabalho competente de A Luneta do Tempo um exemplo a ser seguido. Desafio não menor foi o trabalho de som. Kiko Ferraz será lembrado por conseguir equilibrar sonoramente momentos de tiro, diálogos e canções, um conjunto complexo resolvido de forma brilhante, poucas vezes visto – e ouvido – no nosso cinema.

Na figura do mítico Lampião, Irandhir Santos (O Som ao Redor, 2012, e Tatuagem, 2013) compõe o personagem atemporal, sebastianista, sobrevivente do inferno e do paraíso, que permanece a reger o imaginário da região. Na figura de Maria Bonita, Hermila Guedes está apenas correta em papel pouco significativo – ainda mais pelo símbolo imponente da sua personagem. Limitando-se ao necessário ou sem qualquer traço de ousadia, a atriz tenta convencer, em uma repetição vazia, Lampião de que ele está morto.

Espécie de Santa Maria, a cidade imaginária do escritor uruguaio Onetti, o Cangaço assume representação semelhante, simbolizando um território onde o passado habita inexorável – apesar do presente; onde a História molda o hoje e aponta – com o dedo em riste – para o amanhã.

O projeto ambicioso de A Luneta do Tempo usa e testa a linguagem cinematográfica incessantemente. Ao levar à tela um cordel filmado, o flerte com os épicos do western, de Sergio Leone (Três Homens em Conflito, 1966, e Era uma vez no Oeste, 1968) a John Ford (Terra Bruta, 1961, e O Homem que Matou o Facínora, 1962), não são mera coincidência. Contudo, o trabalho de Valença não se limita a copiar o gênero ou seus diretores, e apresenta uma originalidade encontrada antes apenas nos traços peculiares do Cinema Novo.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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