Crítica


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Sinopse

Sarah é uma astronauta francesa em treinamento na Agência Espacial Europeia. Ela é a única mulher no árduo programa. Ao mesmo tempo, mora com Stella, sua filha de oito anos, e se sente culpada por não poder passar mais tempo em casa. Ao ser escolhida para estar na tripulação de uma missão espacial chamada Proxima, que terá duração de um ano, vê seu relacionamento com a menina ser abalado.

Crítica

A premissa de uma mulher astronauta partindo para o espaço talvez se comunique num primeiro momento com o imaginário popular pertinente à fantasia, aventura e ficção científica. O cinema se habituou a transformar o universo sideral numa plataforma de inúmeras possibilidades de perigo e maravilhamento, cabendo aos astronautas corajosos lidarem com o imprevisível. É no espaço que os heróis lutam contra monstros, choram pela saudade da esposa e filhos, tomam decisões arriscadas capazes de limitar o oxigênio ou quebrar algum equipamento indispensável. O cinema-espetáculo tem utilizado este cenário como catalisador de conflitos e de emoções, espécie de espelho para os problemas que cada um carrega consigo da Terra. Afinal, fala-se do infinito como forma de destacar a diferença deste plano em relação ao nosso mundo. Toda ficção científica nos ajuda a pensar sobre as configurações da sociedade onde vivemos.

 

 

Ora, a primeira surpresa diante de A Jornada se encontra no desinteresse da diretora Alice Winocour em criar tensão, suspense e fantasia. O espectador descobre um drama sobre pessoas prestes a partirem ao espaço, precisando lidar com conflitos muito mais mundanos do que o ataque de seres extraterrestres. Eles se preparam para a solidão, as fortes exigências físicas, o medo de se separarem da família, a pressão dos demais cientistas e da mídia, o receio de se encontrarem diante de algo menos encantador do que seus sonhos de infância. Ao invés do imaginário empolgante do espaço, a cineasta prefere filmar a desconstrução deste romantismo. Ela registra, portanto, os procedimentos longos, burocráticos e exaustivos aos quais os astronautas são submetidos. Como as mulheres menstruam no espaço? Que objetos têm o direito de levar no foguete espacial? Que preparação fazem para lidar com a poeira em Marte? Procedimentos realistas são apresentados com a rigidez de quem retrata os trabalhadores numa linha de montagem. Enquanto alguns espectadores veem no astronauta a imagem do profissional dos sonhos, Winocour enxerga a figura de um funcionário comum – extremamente qualificado, certo, porém com as mesmas pressões de qualquer empresa de grande porte.

É surpreendente a quantidade de temas que o drama consegue abordar em profundidade ao longo da narrativa. Quando se percebe que a viagem espacial constitui o pano de fundo, e não o tema central, percebe-se um filme que aborda o machismo no local de trabalho (Sarah precisa provar o tempo inteiro o seu potencial diante do preconceito dos colegas), o acúmulo de funções específico para as mulheres (espera-se que elas sejam mães ideias, enquanto os colegas homens deixam os filhos em casa sem preocupação), a sensação de abandono que uma viagem do tipo implica para a mãe a filha pequena, o circo midiático criado em torno de uma missão espacial, a dificuldade em demonstrar afeto à família quando se permanece um ano na viagem, a saudade do sol batendo no rosto, do barulho da chuva, dos amigos, dos namorados, do sexo. Um astronauta afirma que a mãe está doente, e tem medo de encontrá-la morta quando voltar. A diretora enxerga nesta jornada uma segregação torturante em termos psicológicos. Ela prefere observar a rotina do astronauta pelo prisma da jornada íntima, impregnada de melancolia. Neste sentido, as cenas entre a mãe Sarah e a filha Stella são de uma beleza impressionante, potencializadas por conflitos verossímeis dentro daquele contexto.

O filme atinge seu potencial graças a um ótimo elenco. Seria muito fácil transformar Eva Green numa heroína forte ou numa mártir chorosa, porém a atriz e a diretora criam uma mulher de talentos evidentes, porém dotada de falhas comuns, colocada à prova de pressões crescentes. Ao invés de externalizar seus sentimentos a cada oportunidade, Green trabalha no limiar da explosão (ou seria implosão?), alternando entre o corpo visivelmente exausto e a necessidade de parecer forte, sorridente e confiante diante dos colegas e das câmeras. Sandra Huller, Lars Eidinger e Matt Dillon interpretam figuras multifacetadas cuja simples existência cria conflitos para Sarah, pelo receio de deixar a filha com o ex-marido ou de perceber que a assistente tem mais tempo de cuidar da filha do que ela mesma. Os conflitos são simples e humanos, de modo que nenhum elemento exterior (acidente, ameaça, briga) é introduzido para aumentar artificialmente a tensão. Neste belíssimo roteiro, as angústias comuns da separação bastam para compor todo o relevo emocional do filme.

 

 

Em termos imagéticos, a diretora segue uma cartilha simples, sem qualquer composição particularmente virtuosa, nem algum movimento de câmera que chame atenção a si mesmo. A janela da imagem é a mais tradicional possível (1.85 : 1), enquanto as imagens alternam os close-ups com planos de conjunto de um dinamismo quase invisível na montagem. Até as cores parecem desbotadas, favorecendo o cinza das grandes construções de aço, os brancos e beges das instituições de treino e quarentena dos astronautas. Nada na fotografia se esforça em tornar aquele ambiente impactante ou misterioso. Os procedimentos, de tão assépticos, sugerem a rotina de algum hospital onde Sarah fosse a enfermeira – ou quem sabe alguma paciente. Neste filme, partir ao espaço se transforma numa experiência triste. Triste por deixar as pessoas amadas, triste por romper com as nossas expectativas de aventura, triste pelo medo de voltar e perceber que o mundo continuou muito bem sem nós. “Você não queria uma bicicleta? Agora ande nela”, afirma o ex-marido, sugerindo que Sarah não teria do que reclamar, após conquistar a oportunidade única de ir ao espaço. Aos olhos dos outros, ela não possui o direito de sofrer, enquanto a filha pequena precisa entender calada o mundo dos adultos, e ficar orgulhosa da mãe que a deixará durante um ano. Existe algo perverso nesta profissão que parecia tão excitante em outros filmes, e que Winocour capta através de um humanismo comovente.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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