Crítica

Conhecido desde os anos 1990 pelo consistente trabalho no curta-metragem (filmografia essa iniciada com Hambre Hombre, 1996), o pernambucano Camilo Cavalcante traz às telas finalmente o seu primeiro longa. A História da Eternidade se passa no sertão, espaço cênico onde encontra a profundidade de mil universos. Cenários, porém, longe de serem distintos,  mas unidos por uma realidade comum a pautar e desafiar os personagens. A jovem Alfosina (Débora Ingrid) é a única mulher de uma família de varões, submetida à hierarquia paterna e com o sonho de conhecer o mar. A viúva Querência (Marcélia Cartaxo) desencontrou-se do amor. Das Dores (Zezita Matos) é a avó que recebe o neto vindo de São Paulo. Todos sob o mesmo sol.

Neste sentido, se há algo que pode ser dito contra o trabalho de Cavalcante é o de reutilizar uma mitologia gasta pelo cinema brasileiro, fazendo uso, ainda, de um conjunto de ferramentas estilísticas características da filmografia pernambucana atual, como a busca pelo estranhamento (aqui na cena inusitada da avó dando o peito ao neto) e a preparação para a epifania (aqui no solilóquio corporal de Irandhir Santos). Se correta na superfície, tal afirmação não deixa de cometer uma injustiça. Analogamente, seria como condenar todo aquele que pensa a Guerra Civil Espanhola depois de Guernica. Não só não parece que seja o caso – apesar dos bons filmes passados no sertão desde os anos 1960 – como a atitude em si soa esvaziada de valor.

Ressalva feita, A História da Eternidade divide-se em três atos amarrados pelo pé: pé de galinha, pé de bode e pé de urubu. Através desta linha, Cavalcante avança as narrativas em paralelo. A realização pessoal é uma luta constante que tem como adversário o meio. O determinismo existencial simbólico marca a evolução das vontades e o espectador se envolve gradativamente, pois é impossível desconsiderar a torcida que movimenta o público quando sente desfeita a solidão da avó na chegada do neto ou a promessa do mar no horizonte de Alfonsina.

Entretanto, Cavalcante não trabalha na idealização. O seu cinema é todo rigor, para bem e para mal. A direção de arte de Julia Tiemann, atenta à importância da simplicidade, assim como a excelente fotografia de Beto Martins – igualmente estreante em longas – a compor os quadros com precisão, em equilíbrio de luz e sombra, fazem com que o mundo dos personagens siga a aspereza. Os planos abertos recorrentes pintam a imensidão esquecida do sertão, dando-nos a certeza do abandono, fruto de um destino inexorável – eterno.

A temática aposta na força da tradição. Somada à incapacidade de se mudar desde fora, pois o sertão é o próprio abandono dos outros, a comunidade apresentada no filme é um museu a céu aberto. Desfila por ali, a poética do atraso. Em meio ao machismo, à solidão e ao preconceito, a chegada do neto (Maxwell Nascimento), do sanfoneiro (Leonardo França) e a figura do tio de Alfonsina (Irandhir Santos) são as possibilidades de renovações. Uma modificação apenas de aparência ou parcial, forjada unicamente para um público que tem na eventualidade de uma mudança algo real. Para os personagens, e isso o filme nos dirá mais tarde, a fé no novo é como crer em deuses de barro.

Nada nasce no sertão, e o que se aventura, acaba crescendo seco por dentro. A beleza das sequências de Cavalcante guardam a amargura do impossível – ou da suspeita trazida pelo final, de que a dificuldade é tão grande quanto a sorte necessária. Ainda que paradoxal, A História da Eternidade tem na luta insólita pela mudança o próprio músculo. Talvez este seja o coração, se ele puder suportar.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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