Crítica


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Sinopse

Uma verdadeira procissão de fãs acompanha o Tour de France ao longo de trilhas escarpadas, das Ardenas ao Col d’Izoard. O sol está a pino, todos acabam se bronzeando, amigos se reúnem. É verão e começa a grande missa.

Crítica

É fascinante encontrar cineastas que, diante de um grande espetáculo midiático, preferem se focar nos bastidores. Ao invés de registrarem as disputas mais acirradas do Tour de France, ou mesmo a preparação dos maiores ciclistas do mundo para a prova, os diretores Méryl Fortunat-Rossi e Valéry Rosier se dedicam àqueles que não são atletas, nem possuem conhecimento particular sobre o esporte. Em A Grande Missa, o foco se encontra nas pessoas idosas que deslocam seus trailers ao desfiladeiro de Izoard, quase duas semanas antes da competição, para terem o prazer de testemunhar durante alguns minutos a subida dos competidores – e, quem sabe, aparecer na televisão. A dupla de cineastas encontrou casais e grupos de amigos que comparecem anualmente, à mesma beira da estrada, esperando o tempo passar, ou talvez se possa dizer, a prova chegar.

Assim como seus personagens, o filme possui pouco ou nenhum interesse pelo ciclismo em si. O documentário prefere enxergar o Tour de France enquanto evento social para estes personagens. Durante a passagem dos ciclistas, eles encontram os amigos, jogam cartas, tomam o aperitivo diante da natureza, telefonam aos amigos que não puderam comparecer. A prova se torna uma mistura entre férias e ritual de pessoas com bastante tempo livre. Neste sentido, o título A Grande Missa se justifica muito bem: trata-se de um ritual, quase religioso, executado pelos viajantes. A referência à composição clássica de Mozart também se encontra nos intertítulos musicais que, somados a Ravel, brincam com a importância excessiva atribuída ao Tour de France pelos protagonistas, em oposição aos passantes barulhentos e turistas eventuais. Os personagens principais se estimam mais merecedores daquele espaço, por terem chegado com tamanha antecedência. Qual diferença haveria entre esses senhores de 70-80 anos de idade e os adolescentes que acampam perto de estádios, esperando pelo show de seus ídolos?

Um dos principais méritos do projeto provém do humor generoso, extraído unicamente das escolhas de linguagem cinematográfica. Como bons cronistas, os cineastas captam o momento exato que uma televisão para de funcionar, quando um casal briga ou quando um trailer ameaça atropelar os vizinhos. Existe um clima de “filme de acampamento na floresta” muito bem captado pelos diretores, com o diferencial de se tratar de pessoas aposentada, que jamais foram adeptas ao esporte. As composições cuidadosas, mesmo dentro dos trailers apertados, utilizando luz natural e apostando no formato scope, apresentam uma beleza excepcional. A câmera chega ao ápice de registrar uma banal ligação telefônica em dois ângulos diferentes e simultâneos, o que conduz à sensação de certa ficcionalização, ou pelo menos de um controle muito preciso da banalidade à sua frente. Mesmo filmando uma rotina comum, a direção de fotografia consegue retratar com eficácia a importância do evento para aquelas pessoas.

De fato, o olhar da direção impressiona pela sensação de onipresença: a câmera parece estar presente dentro de vários trailers ao mesmo tempo, acompanhando o instante muito ágil de uma subida dos ciclistas pelo ponto de vista de diversos casais. Fortunat-Rossi e Rosier devem ter conquistado uma proximidade notável com estes senhores e senhoras para estarem ao mesmo tempo colados a seus rostos e seus corpos, porém sem despertar a aparência de intervenção. Os casais conversam de maneira despreocupados, como se não houvesse uma equipe de filmagem logo ao lado. Em se tratando de um filme sobre a espera, a montagem se revela bastante ágil, intercalando elipses através de boas rimas visuais e sonoras. A chegada dos competidores, suposto clímax pelo qual todos os personagens esperam, torna-se anticlimática: a câmera jamais cessa de olhar para os donos dos trailers como verdadeiros donos do espetáculo.

Além de constituir um pequeno filme de rara precisão técnica e estética, A Grande Missa chama atenção pelo humanismo. Entre brincadeiras banais e falas cotidianas, estas pessoas transparecem sua solidão, a saudade dos filhos que nunca visitam, a vontade de se tornarem importantes ao emprestarem um calibrador de pneus a algum atleta. Eles discorrem sobre o envelhecimento, sobre alguns traumas passados. Afinal, a grande espera pela chegada dos ciclistas (e pela eventual aparição dos filhos, e pela aparição surpresa nas câmeras de televisão), não deixa de simbolizar uma espera pela morte, ou por algum momento de finitude. Os personagens repetem seu ritual quase religioso porque ainda podem fazê-lo, e porque em breve não poderão mais. A cada ano que retornam ao desfiladeiro de Izoard, com seus corpos mais cansados, estão de certo modo testando a si próprios, experimentando a permanência e a perenidade. Existe um tom delicadamente melancólico nos velhinhos e velhinhas que experimentam, ano após ano, a inevitável passagem do tempo.

Filme visto online no MyFrenchFilmFestival, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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