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Sinopse

Passando as temporadas de verão visitando seu irmão e seu filho no campo, a veterana atriz Irina Arkadina leva Boris numa desses retiros. Ele se torna alvo da paixão de Nina, vizinha que, por sua vez, é alvo do amor do filho de Irina.

Crítica

Desde os primeiros minutos que aparecem em cena, os protagonistas de A Gaivota (2018) podem ser lidos com surpreendente facilidade. Encontramos cerca de doze personagens num momento de grande intensidade emocional, quando todas as intenções são explícitas. Detectam-se as paixões assumidas ou escondidas, as invejas e ciúmes, as traições e brigas. A adaptação cinematográfica da peça de Anton Tchekov poderia se atardar na construção individual deste grupo de amigos e familiares, porém o diretor Michael Mayer mantém-se fiel à ideia de que estes artistas são muito mais interessantes quando estão juntos, provocando uns aos outros. O cinema permitiria digressões, silêncios, contemplações, mas o filme sustenta o foco integral nos diálogos. O resultado transpira o respeito solene ao texto de origem, ainda que revele poucas ambições cinematográficas propriamente ditas. Para o espectador, a transparência imediata no jogo dos atores – percebe-se a diva egocêntrica, a jovem atriz ingênua, o escritor famoso e invejado, e aquele sem reconhecimento – pode ser estimulante ou entediante, a gosto. Joga-se com status e classe social, restando aos personagens desenvolverem um único traço principal cada, exercendo sua funcionalidade dentro da teia de conflitos.

Para se distanciar do aspecto teatral, o cineasta aposta em recursos de câmera. A direção de fotografia de Matthew J. Lloyd, um especialista em filmes de super-herói, opta pela imagem móvel e tremida, oscilando de um canto ao outro, aproximando-se violentamente do rosto dos atores ou circulando-os quando estão sozinhos da natureza. Nada justifica tamanha movimentação, sobretudo diante de personagens sentados dentro de casa ou no jardim, conversando. Contra a pretensa imobilidade do palco cinematográfico, Mayer imprime um dinamismo forçado, muito chamativo por si próprio. Teria sido ainda mais interessante criar contrapontos imagéticos para tantos diálogos, ao invés de reproduzir cegamente as acusações e declarações de amor. Como transmitir uma cena de ciúme, ou um momento de ruptura entre amantes, por meio de símbolos? Afinal, a própria gaivota assassinada do título constitui um símbolo explorado pelos personagens. Haveria um delicioso trabalho de adaptação de linguagens, no sentido de encontrar o equivalente visual à riqueza cênica de Tchekov. Ora, o cineasta prefere a ilustração mais convencional da peça, preservando inclusive os nomes russos dos personagens e das cidades. Estranhamente, os atores norte-americanos chamam uns aos outros de Medvedenko, Konstantin e Shamrayev, pronunciados com sotaque ocidental dentro desta Rússia onde se conversa em inglês. Demanda-se certa clemência ao espectador.

Diante desta configuração, o prazer se encontra não tanto na construção cinematográfica, mas na interação entre grandes atores, digladiando-se em papéis levemente irônicos no que diz respeito às suas personas. Annette Bening, conhecida tanto pela força da atuação quanto pelos maneirismos, encarna a diva dos palcos, famosa por peças populares e não muito intelectuais. Esta constitui a oportunidade perfeita para a atriz sublinhar a malícia das falas e os gestos grandiloquentes. Saoirse Ronan já interpretou inúmeras vezes a moça ingênua em romances de época, porém desta vez, ela vive uma jovem atriz inexperiente, tendo a oportunidade de interpretar (muito bem) os trejeitos pavorosos da artista sem talento. Corey Stoll e Billy Howle dão vida ao escritor famoso e o fracassado, respectivamente, ambos criticados em suas carreiras, seja pelo sucesso a partir de textos fáceis, ou pela presunção artística que impede a comunicação com o leitor. Existe uma ironia mordaz na maneira como estes artistas e intelectuais são analisados pela imagem que desejam transmitir, ao invés do que realmente têm a oferecer enquanto criadores. Nenhum livro de Konstantin ou Boris é lido durante a narrativa; nenhuma atuação de Irina ou Nina é vista em detalhes. A adaptação cinematográfica também demonstra, por si só, um olhar crítico às pequenezas destes artistas.

Em termos de direção, o resultado é irregular, alternando bons momentos com outros menos inspirados. O sarcasmo da alcoólatra e amargurada Masha (Elisabeth Moss) diante do escritor famoso produz uma sequência excelente, e o mesmo pode ser dito dos planos únicos em que diversos amantes rejeitam uns aos outros: Konstantin (Billy Howle) recusa os avanços de Masha, que segundos depois rechaça com mesma violência o flerte de Medvedenko (Michael Zegen). Quanto mais o filme assume a artificialidade tragicômica desta ciranda de amores, melhor se torna o resultado em tempos contemporâneos, quando as paixões à primeira vista e as tentativas de suicídio por rejeição amorosa não possuem o mesmo valor do fim do século XIX. Em contrapartida, as cenas excessivamente dramáticas parecem desconfortáveis para a direção, indecisa sobre como adaptar os efeitos das coxias. As duas tentativas de suicídio poderiam ser muito bem trabalhadas através de efeitos sonoros fora de quadro, no entanto Mayer e a montadora Annette Davey hesitam entre mostrar e sugerir. De fato, o instante logo após a primeira tentativa de suicídio constitui um vácuo dramático, como se os personagens ignorassem um gesto tão potente. Falta imaginação ao diretor, incapaz de preencher lacunas deixadas propositadamente à sugestão dos interlocutores.

Além disso, a retomada das primeiras cenas, propondo uma temporalidade circular – ou seja, o terço final retorna ao terço inicial – promove um efeito de estranheza considerável quando Mayer reutiliza os exatos planos apresentados anteriormente. Em narrativas do gênero, quando o final retorna ao início, é mais comum apresentar novos ângulos, acrescentar frases ocultadas a princípio, ou imagens que completem o sentido e nos permitam enxergar a cena por outro ângulo. Apesar dos pesares, a narrativa possui ritmo fluido e agradável, graças ao elenco que compreende a sutileza cômica dos diálogos sem sublinhá-los em excesso. Seria fácil tornar as conversas pomposas demais, como de costume em filmes sobre séculos passados, ou então atualizá-la ao despojamento contemporâneo, no entanto o grupo formado por nomes tão talentosos encontra com facilidade um registro intermediário. A direção de arte, os cenários e figurinos não impressionam positiva ou negativamente, algo que talvez contribua a concentrar a atenção do espectador exclusivamente no jogo cênico. Pelo deleite de presenciar um adulto pedindo à amante permissão para ficar com outra, ou a chacota de um grupo de artistas à fracassada peça-dentro-da-peça, o resultado se revela um prazer cinematográfico sólido, ainda que pouco criativo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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