Crítica

De volta a Xangai para o funeral do mestre, Chen (Bruce Lee) precisa, assim como seus colegas de escola, engolir a seco as provocações dos rivais japoneses que fazem pouco do luto e sustentam ter um estilo de luta superior. Segundo os ensinamentos do mentor chinês recém-falecido, as artes marciais servem ao aprimoramento do corpo e da mente, não como pretexto para brigas. Mesmo assim, pois transtornado, o protagonista de A Fúria do Dragão não contém sua ira e aceita o desafio, derrotando logo em seguida todos os rivais numa cena muito bem filmada. A coreografia torna crível a vitória contra os inúmeros oponentes, sem que fiquemos com aquela sensação incômoda de os figurantes apenas esperarem sua vez de cair por conta dos golpes do ator principal.  A vingança é, aparentemente, o principal motor do filme dirigido por Lo Wei, uma sucessão de desforras que perpetua a violência.

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A caracterização estereotipada dos alunos japoneses dá uma pista do realmente importante em A Fúria do Dragão, a camada que está camuflada nas atitudes do personagem de Bruce Lee, ou melhor, que as guiam subterraneamente. Os nipônicos são vistos como invasores patéticos e degenerados, dispostos a agir de forma escusa para fazer prevalecer seus preceitos. Exemplos disso, a associação desse clã antagonista com a máfia russa e até mesmo a dança sensual de uma gueixa seminua, contraposta pelas recatadas e valentes chinesas. Há um nacionalismo ferrenho incrustado na trama. Solitário, Chen caça adversários, penhorando inclusive a pureza defendida por seu mestre e a possibilidade de um futuro nos braços da mulher amada para evitar injustiças. Distante da retidão comumente associada aos mocinhos, ele mata sem dó nem piedade, usando golpes de kung-fu e o indefectível tchaco.

Nas cenas de luta de A Fúria do Dragão, Lo Wei sublinha a letalidade sem igual de Chen. O diretor alterna closes e planos abertos, estes que dão conta da ação em sua totalidade, elevando assim a tensão, à moda dos spaghetti westerns. O filme não preza pela sutileza, tudo é muito dito e falado, característica estilística das produções estreladas por Bruce Lee, calcadas nos embates corporais. Mas, neste filme, mesmo espalhafatosa, a rixa entre chineses e japoneses se impõe gradativamente como o verdadeiro substrato narrativo. Não há espaço para relativizações, o bem está do lado chinês, a despeito da maneira extrema com que Chen resolve as divergências. Os nipônicos, por sua vez, são ervas-daninhas que merecem destino trágico, primeiro, porque foram desrespeitosos num instante de dor, e segundo, por utilizarem as artes marciais como cortina de fumaça para comportamentos “indignos”.

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Filmado quase todo em estúdio, A Fúria do Dragão possui figuras unidimensionais com propósitos bastante definidos. Bruce Lee vive um homem atormentando pela impossibilidade de fugir do destino de cobrar uma dívida de sangue que alude às dificuldades enfrentadas pelos chineses a partir do momento em que os japoneses começaram a ter mais influência em Xangai. Sendo assim, Chen é o típico herói trágico, pois carrega como fardo a necessidade de sujar as mãos e macular os postulados pacíficos de seu respeitado mestre, paradoxalmente, em função da perpetuação da doutrina na qual foi educado. Bruce Lee exibe impressionante capacidade de luta, faz caras e bocas ao derrotar inimigos, não encontrando sequer um à sua altura, reforçando a mística do dragão chinês indestrutível, símbolo de um idealismo, o da nação resistente, onde o sacrifício de alguns vale se proporcionar a felicidade dos demais.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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