Crítica

Diretor de origem teatral, o australiano Simon Stone realiza sua estreia como cineasta, adaptando uma das mais célebres peças de Henrik Ibsen, O Pato Selvagem, obra que havia levado aos palcos anteriormente. Tendo intimidade com o material, em A Filha, Stone atualiza a trama aos dias de hoje, transferindo a ação da Noruega para uma pequena cidade da Austrália, cuja existência gira em torno da secular madeireira pertencente a Henry (Geoffrey Rush). Não surpreende, portanto, que o anúncio feito pelo personagem, informando que irá fechar a empresa em razão da crise econômica, acabe afetando a vida de grande parte da população local. Da mesma forma, o retorno de seu filho, Christian (Paul Schneider), após anos vivendo nos Estados Unidos, acarretará a revelação de segredos que atingirão um grupo de personagens.

A volta de Christian, que havia abandonado a cidade após o suicídio da mãe, ocorre em virtude do casamento do pai com uma antiga empregada. Atormentado por seus demônios presentes – o alcoolismo e o conturbado relacionamento com a esposa norte-americana – Christian também é obrigado a enfrentar fantasmas do passado, que surgem não apenas da presença de Henry, a quem culpa pelo destino da mãe, mas também do reatamento da relação com um amigo de infância, Oliver (Ewen Leslie), funcionário da madeireira, e da consequente aproximação com a família deste: a esposa Charlotte (Miranda Otto), a filha adolescente Hedvig (Odessa Young) e o pai Walter (Sam Neill), antigo sócio de Henry, libertado da prisão após ser condenado sozinho por fraudes cometidas por ambos.

Abrindo o longa com a imagem de uma pata ferida, alvejada pelo tiro impreciso de Henry, prontamente colocada numa gaiola e levada até Walter, Stone expõe, de modo não tão sutil, a grande metáfora da história, utilizando o animal como um símbolo de todos aqueles lacerados pelas ações de Henry. A princípio, Christian se apresenta como vítima central das atitudes do pai, contudo, como o próprio título da adaptação prenuncia, os efeitos nocivos sobre Hedvig também terão fundamental relevância. Algo que o afeto desprendido pela garota à ave durante a recuperação na “floresta particular” do avô deixa ainda mais evidente, contribuindo para que uma descoberta essencial seja antecipada, mais cedo do que deveria, e terminando por descartar outras possibilidades de conflitos previamente sugeridas em relação à personagem.

Em sua proposta de transposição da trama, Stone se vale eficazmente das belas paisagens naturais australianas, que evocam o lado “selvagem” explicitado no título da peça, apresentando um bom senso cinematográfico e desviando habilmente da teatralidade do material original. Tal noção é construída em conjunto com o ótimo trabalho do diretor de fotografia Andrew Commis – de O Sonho de Greta (2015) – e da montadora Veronika Jenet, que aposta numa edição de desencontros entre som e imagem em diversas passagens do longa, nas quais os diálogos em off são ilustrados por cenas de ações distintas ou em tempos ligeiramente diferentes – mostrando algo que ocorre alguns segundos antes ou depois do que está sendo dito fora de quadro. Uma estratégia que, mesmo aplicada repetidamente, atinge o efeito esperado, servindo para pontuar os silêncios intermediários.

A ambientação também serve para estabelecer a pesada e melancólica atmosfera de transformação que cobre a cidade, com moradores abandonando-a à procura de novos empregos. Um aspecto que, mesmo minimizado no arco final, se conecta à questão do confronto de classes presente na obra de Ibsen. As raízes teatrais, contudo, não negadas totalmente por Stone, que registra os longos embates verbais quase sempre em cenários fechados, com uma proximidade mais naturalista e urgente dos rostos e expressões dos personagens. Uma abordagem que ganha corpo através da boa condução dos atores que, em geral, apresentam um desempenho envolvente. Talvez o único elo fraco seja Schneider, obrigado a carregar o personagem mais emocionalmente bombardeado, responsável por desencadear a série de eventos trágicos, e que empalidece na comparação com o restante do elenco.

O talento destes, ainda assim, compensa a fragilidade da composição de Schneider, mesmo quando lhes é oferecido menos tempo de tela, como à excelente Miranda Otto ou a Rush, mais contido do que o habitual. Sam Neill, por sua vez, protagoniza mais momentos de brilho, entretanto, é mesmo da dupla Odessa Young e Ewen Leslie que emana a força de A Filha. A relação de Hedvig com o pai transborda uma sinceridade comovente e, na jornada de amadurecimento forçado da personagem, exibindo um misto de desenvoltura e inocência, Young imprime traços de vivacidade e cor, com seus cabelos rosados, ao ambiente acinzentado que a cerca.

A qualidade da direção de atores talvez não seja plenamente refletida no equilíbrio dramático, pois há um perceptível acúmulo de conflitos no ato derradeiro, elevando a projeção da gravidade da narrativa a um nível difícil de ser alcançado. Além disso, a citada antecipação da revelação principal, inevitavelmente, diminui seu impacto. Felizmente, o vigor proveniente do texto de Ibsen não se esvai totalmente, com Stone sustentando a intensidade do embate entre a verdade absoluta e a mentira vital do qual tratava o dramaturgo. Sem abandonar a aura fatalista, o cineasta consegue inserir um fio de esperança, de que mesmo um pato de asas feridas pode, um dia, voltar a voar.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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