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Sinopse

Emma é uma jovem lésbica que vive numa cidade conservadora de Indiana, Estados Unidos. Ela pretende levar a namorada ao baile de formatura, mas a escola não permite o casal de meninas na celebração e prefere anular o evento. Quando descobre a notícia pelas redes sociais, um grupo de astros decadentes da Broadway decide ajudar Emma e aproveitar a repercussão do caso para voltar aos holofotes.

Crítica

É interessante a escolha do lançamento de A Festa de Formatura (2020) durante o fim do ano. Embora não se passe no Natal, o musical constitui uma típica atração natalina pela crença na transformação mágica das pessoas e no reforço das virtudes – sobretudo a tolerância. O diretor Ryan Murphy defende a importância da família na realização individual, porém compreendida enquanto núcleo expandido, incluindo amigos, namorados, figuras paternas e maternas não relacionadas pelo sangue. A adolescente Emma (Jo Ellen Pellman), expulsa de casa por ser lésbica, não demonstra qualquer apreço pelo pai e mãe, que sequer aparecem nas imagens. A avó, que abriga a garota, tampouco desempenha uma função importante na vida dela. Assim, a proibição de Emma em celebrar o baile de formatura, visto que a escola não lhe permite levar a namorada, constitui um tema secundário. Em primeiro lugar se impõe a questão do acolhimento: quem abraçará estes indivíduos marginais? A resposta se encontra nos laços eletivos e na arte. Cada protagonista solitário – todos o são, à sua maneira – encontram na dança e na música uma forma de acalento.

Deste modo, o filme combina mensagens didáticas – a autoaceitação, o respeito às diferenças -, com reflexões que ultrapassam a lição de moral. Primeiro, sugere a criação de espaços de proteção às diferenças, ao invés da reinserção forçada nos locais de origem (ou seja, na ausência da família, crie a sua); acredita numa forma de espiritualização para além das igrejas (a homofobia da Sra. Greene é mais contornada do que combatida), e defende que os marginais falem por si mesmos, ao invés de serem representados por pessoas alheias a estas vivências (vide a tragicômica defesa de Dee Dee em nome da adolescente). Enquanto estratégia de posicionamento social de indivíduos LGBTQIA+, o filme ultrapassa o estágio comum às produções dos anos 1990, quando se pedia às estruturas convencionais que aceitassem gays e lésbicas como favor ou gesto de bondade. Agora, encoraja-se estas pessoas a encontrarem força em pessoas semelhantes, driblando a igreja, a família patriarcal e o ensino tradicional. Na ausência de baile, desenvolva a sua celebração pessoal. Esqueça os figurinos, as músicas e a cultura tipicamente heterossexual. O discurso trata de autonomia ao invés de conciliação, enquanto discute lugar de fala e a elaboração de uma cultura LGBTQIA+.

Por estes fatores, a direção assumidamente kitsch de Murphy encontra seu espaço. As cores são exageradas, as locações soam tão artificiais quanto cenários teatrais, os chroma keys na viagem são pavorosos, os números musicais ostentam uma quantidade de sorrisos que beira o filme de terror (como se as líderes de torcida, os atletas musculosos e as outras figuras do imaginário norte-americano fossem robotizadas). O diretor privilegia a noção do baile ao invés do baile em si, forçando a mão em enquadramentos, direção de arte e fotografia ao limite do grotesco. Através deste processo, reforça tanto a artificialidade dos códigos de convivência – a cena dos convites ao baile – quanto as ilusões do mundo do espetáculo, representado pela trupe egocêntrica da Broadway. Estes personagens se tornam criadores de suas ficções individuais: Dee Dee (Meryl Streep) e Barry (James Corden) elaboram o roteiro do retorno à fama por meio do caso Emma, Angie (Nicole Kidman) imagina a oportunidade de estrelar o musical Chicago, o diretor Tom (Keegan-Michael Key) escapa à rotina entediante pelo sonho com sua estrela preferida, e a Sra. Greene (Kerry Washington) concebe uma comunidade asséptica ao delimitar as regras do baile. Já Emma reage quando tentam se apropriar de sua ficção, estabelecendo regras próprias para a comemoração de seus sonhos. Em última instância, este seria um projeto sobre o poder da ficção.

Diversos críticos têm comparado este musical a Chicago (2002), Moulin Rouge: Amor em Vermelho (2001) e Os Miseráveis (2012) para desqualificar a produção de 2020. Ora, A Festa de Formatura mira num estilo multicolorido, pop e teen, muito distante dos musicais que miram o Oscar. O cineasta prefere se aproximar do universo de Glee (2009 – 2015, do qual é criador) e High School Musical (2006 - 2008). Talvez a comparação mais próxima ainda se encontre na saga pré-adolescente Descendentes (2015 - 2019), da Disney Channel, outro projeto de fortes cores primárias, canções ultra mixadas via auto-tune e coreografias histriônicas jamais visam comprovar os talentos de dançarinos do elenco. É difícil imaginar Meryl Streep disparando agudos tão potentes quanto aqueles de sua personagem, e os personagens sequer se esforçam para imitar o canto ao vivo – nem Andrew Rannells, cujos dotes vocais permitiriam a reprodução de seus números musicais sem problemas. A direção brinca com a romantização pelo viés da metalinguagem: o filme idealiza os dotes de personagens que, por sua vez, acreditam ser melhores do que são. Os números Zazz, The Lady’s Improving e Just Breathe constituem paródias assumidas dos musicais da Broadway, enquanto Love Thy Neighbor e Changing Lives efetuam uma sátira corrosiva às iniciativas beneficentes. Há um teor deliciosamente sarcástico nas canções: este filme busca ser inspirador e comovente enquanto faz chacota de filmes inspiradores e comoventes.

Talvez a maior fragilidade provenha do roteiro, incapaz de articular a presença de diversos personagens em cena simultaneamente. O filme se esquece de Trent e Sheldon (Kevin Chamberlin) durante parte considerável da trama, e nunca ocupa Angie a ponto de justificar a sua presença no grupo. Chega a ser curioso que uma atriz do porte de Nicole Kidman tenha aceitado um papel tão irrelevante na trama. Já a duração soa excessiva: a montagem se beneficiaria com a eliminação de dois números musicais de contribuição modesta à narrativa e ao desenvolvimento de personagens. Em meio a tantos talentos se divertindo com caricaturas de si mesmos (Meryl Streep sendo a diva multipremiada, em atuação que evoca as drag queens; Andrew Rannells no papel do astro qualificado que não consegue papéis bons o suficiente), o destaque cabe a Jo Ellen Pellman, trazendo variações preciosas à protagonista. Ela foge tanto à vitimização quanto ao heroísmo, evitando as armadilhas com maior facilidade do que a colega Ariana DeBose. Ao final, o jogo de estereótipos opõe os conceitos de conservadorismo e modernidade, de religião e laicidade, de América profunda (Indiana, Estado republicano simbolizado pelo consumismo dos shopping centers) e nação cosmopolita (Nova York, Estado democrata representado pelos letreiros luminosos). Por fim, ambos os lados da equação são ridicularizados, coloridos e abraçados pela abordagem otimista.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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