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Sinopse

Ugyen está terminando a formação de professor, mas não tem nenhuma vocação para ensinar. Seu sonho é conseguir um visto para a Austrália, onde poderá cantar nos bares de Sydney. No entanto, é enviado pelo governo à "escola mais remota do mundo", em Lunana, no topo de uma imensa montanha. Ugyen detesta esta vida pacata e sem tecnologia, até descobrir o prazer da vida simples.

Crítica

O drama butanês-chinês parte de uma hipótese clara: as cidades tornam os indivíduos frios, desconectados da família e da natureza, enquanto o campo preservaria os verdadeiros guardiões das tradições e dos bons costumes. Em outras palavras, sustenta-se a tese do bom selvagem: o ser humano nasce puro, porém a sociedade o corrompe. A narrativa exemplificar este caso através das ferramentas da fábula: Ugyen Dorji (Sherab Dorji) é um professor sem vocação ao ensino, preferindo passar a vida em bares com os amigos. Quando é enviado à “escola mais remota do mundo”, acessível após oito dias de trilhas rumo ao cume de uma montanha, ele detesta o local e as pessoas sorridentes que ali vivem. No entanto, ganha um doce quem adivinhar as transformações sofridas pelo homem amargo, egoísta e preso aos aparelhos eletrônicos. A subida geográfica rumo à minúscula cidade Lunana também funciona como uma ascensão aos céus, à pureza da humanidade em meio às nuvens. Embora manifeste um comportamento arredio com os vizinhos e colegas, continua sendo tratado com cortesia e sorrisos. Aos poucos, será impregnado de otimismo por osmose.

Em seu primeiro longa-metragem, o diretor Pawo Choyning Dorji aplica a cartilha consagrada do realismo social. A fotografia privilegia as cenas externas com Ugyen e seus colegas diante da paisagem exuberante das montanhas, em luz natural. A câmera levemente móvel permite seguir os movimentos dos corpos, permanecendo atenta às mínimas expressões dos rostos tímidos. Enquanto isso, valoriza ao máximo a cultura local, em planos de detalhe: a fogueira acesa com esterco de iaque, as janelas protegidas do frio com papel de arroz, as escolas de barro, os chás oferecidos pelos líderes da comunidade, as pilhas de pedras erguidas em homenagem aos deuses protetores. Em termos de ritmo, a montagem permite que os olhos se concentrem nas paisagens e absorvam a dinâmica contemplativa dos moradores do campo. Paira um tom silencioso, interrompido somente por canções diegéticas — ou seja, entoadas pelos próprios personagens, em cena. Nota-se um respeito profundo, mas também leve, em relação a esta cultura. Felizmente, o cineasta aparenta ter familiaridade com o contexto retratado, sem fetichizá-lo para os olhares curiosos do espectador. Naturaliza-se a diferença enquanto forma de acolhimento.

Isso não impede o resultado de se inserir na vertente do orientalismo para exportação. A Felicidade das Pequenas Coisas (2019) remete às obras de Kim Ki-Duk e outros cineastas que revestem o real de um manto sagrado-místico. Em outras palavras, o respeito se diferencia da frieza antropológica, preferindo uma aura moral: os gestos dos moradores de Lunana são percebidos como intrinsecamente melhores do que aqueles das cidades. Dorji não se limita a opor cidade e campo, tradição e modernidade, individualismo e coletivismo: ele faz questão de sugerir que a vida campestre seria melhor, além de constituir a única salvação às pessoas solitárias de conglomerados urbanos. De certo modo, o professor é “salvo" pela experiência em Lunana, onde conhece, pela primeira vez, a satisfação no trabalho, o amor verdadeiro com uma moça bela e servil, a amizade verdadeira com sujeitos que valorizam sua profissão. Ao contrário da capital Timbu, onde educadores perderam sua autoridade, no topo da montanha de iaques ainda se acredita que “os professores tocam o futuro”, razão pela qual Ugyen recebe um tratamento privilegiado. O herói deixa do anonimato das multidões para descobrir seu valor. Em consequência, torna-se um homem melhor — vide o instante em que abre mão de seus papéis de parede para que os alunos tenham onde escrever.

O ponto de vista em defesa da pureza das crianças e da natureza selvagem se defende. Em contrapartida, cabe questionar a romantização da miséria promovida por tal ideologia. Os calçados desempenham papel importante nesta simbologia: o guia do protagonista se sente feliz por ter botas feias, porém resistentes, em comparação com os sapatos finos do professor. “Se eu usasse sapatos extravagantes como os seus, provavelmente nem saberia como andar”, defende o morador local. Adiante, Ugyen encontra o dono de um albergue, que nunca teve calçados, porque se acostumou a andar descalço e gosta da sensação dos pés no chão. O discurso sugere que as crianças são contentes porque não têm bolas para brincar, porque extraem o fogo das fezes dos iaques. Por isso, quando a eletricidade finalmente chega ao lugar isolado, o jovem nem sequer a perceberá, porque já encontrou “a felicidade das pequenas coisas”, compreendidas como poucas coisas, precárias. A noção de que pobreza leva ao contentamento, pois os humildes seriam menos corrompidos pela cobiça e pelo desejo de posses, surge com força no discurso de vocação espiritualista (apesar de distante do religioso). Prega-se o retorno a uma vida monástica, focada no essencial. Lunana estaria, literalmente, mais perto de Deus do que as cidades no nível do mar.

Ao menos, o diretor executa esta receita tradicional com sobriedade. O espectador nunca é convidado a lamentar o destino das pessoas desprivilegiadas (elas estão perfeitamente alegres, e portanto conformadas, com o pouco que têm). Isso significa que as aguardadas sequências de aprendizado através da catarse emocional estão descartadas — nada de choro fácil por aqui. Os atores inexperientes cumprem seus papéis com despojamento, enquanto as crianças (Pem Zam, em particular) são verdadeiros achados. O andamento da trama nunca se estende desnecessariamente, tampouco se acelera: o roteiro é enxuto, e cada cena cumpre um propósito específico ao longo desta jornada. A Felicidade das Pequenas Coisas possui uma competência tão clara quanto acadêmica — em outras palavras, o diretor constrói imagens e sons de qualidade profissional, ainda que desprovidos de ousadia ou criatividade. O resultado se assemelha ao trabalho de conclusão de curso do melhor aluno da turma de audiovisual, o nerd que sempre fornece as respostas certas e tira notas máximas. Trata-se de um cinema correto em sua construção, e também desgastado pela ausência de atrito, de ambiguidade, de discussão. Como bom professor de crianças pequenas (o diretor faz de Ugyen seu alter-ego), Dorji oferece a reflexão pronta, esperando cativar o público com uma lição de vida. Apreciará o resultado quem estiver aberto a este tipo de cinema comportado e virtuoso.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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