Crítica


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Sinopse

Leôncio, o rei dos ursos, vive com o filho pequeno numa comunidade em meio à natureza. Um dia, o garoto é sequestrado durante a pesca. Após procurar por todos os lados, o pai desesperançado escuta o boato de que o ursinho possa estar vivendo entre os humanos num palácio. Esta será a oportunidade para os animais descobrirem o modo de vida dos homens, com tudo de bom e de ruim que isso pode implicar.

Crítica

Há certa beleza na ideia de animais humanizados diante de humanos animalescos. A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília discorre sobre a nossa (des)humanidade pelo ponto de vista de um gentil grupo de ursos. Eles alimentam-se apenas de salmões - jamais pessoas - e cuidam uns dos outros com carinho. No entanto, ao descobrirem a vida de luxo dos humanos dentro de um castelo, sucumbem à tentação do poder e da futilidade. Em suma, o urso nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Partindo de uma premissa escrita na década de 1940, o diretor Lorenzo Mattotti desenvolve uma ampla fábula de valores universais como a amizade, a importância da família, o altruísmo, a conservação das raízes, a transmissão da cultura local etc. Os bichos possuem traços arredondados e vozes bondosas, enquanto os humanos ostentam corpos finos de insetos e o instinto de predadores ferozes. Este seria o mundo ao inverso, se não estivesse reproduzindo a dinâmica percebida pelo cineasta enquanto realidade: a exploração do homem pelo homem, a necessidade de luta pela revolução social e assim por diante. Existe um componente tão progressista (a revolta contra sistemas opressores) quanto conservador (a resistência exclusiva pela família patriarcal) dentro da narrativa buscando agradar a gregos e troianos.

A brincadeira metalinguística representa uma das forças do projeto. O contraste entre a transmissão das estórias via oralidade e via cinema digital gera instantes de terna poesia dentro da caverna, quando a narrativa mais ampla se mescla com episódios pontuais. De repente, os desenhos assumidamente amadores, sobre uma lona circense mambembe, se convertem em sofisticadas animações contemporâneas, ressaltando os diferentes estilos entre ambos. A inocência do contador profissional se contrasta com a precisão histórica do urso, que viveu de fato as aventuras narradas pelo italiano. O animal sábio se depara com a oportunidade tragicômica de escutar sua experiência de vida narrada a si mesmo por terceiros. Depois, os papéis se invertem: os profissionais da transmissão de fábulas – um pai e uma filha – se convertem em espectadores quando o urso lhes fornece precisões a respeito dos fatos. Não há nada ingênuo nesta trajetória espelhada (os papéis se invertem na metade exata do filme), sugerindo que todo criador de ficções estaria, no fundo, falando sobre si mesmo. O cineasta reforça a dinâmica dos contos que se transformam, se expandem e ganham vida para além do ocorrido. O real e a ficção se retroalimentam.

Quanto mais a animação se descola da linearidade, melhor é o resultado. As cenas de espetáculo e perseguições no palácio, apostando em expressivos jogos com proporções (gatos dezenas de vezes maiores do que ursos, os animais carregados por fantasmas imensos), geram resultados delirantes, mais apropriados ao cinema autoral do que às narrativas utilitárias. Nem todas as cenas servem para algo, no estilo de um ensinamento moral ou de uma reviravolta narrativa. No entanto, estas ambições são mescladas com conflitos simples: os sucessivos desaparecimentos do ursinho Tonio, a ingenuidade improvável do Rei Leôncio face às atitudes maliciosas dos assessores, a introdução de duas garotas que pouco ou nada fazem na trama – e que sequer existiam na obra original, vale ressaltar. Por um lado, permite-se a violência inesperada (o confronto com armas de fogo), por outro lado, uma serpente gigantesca proporciona uma resolução pouco ambiciosa. A discussão sobre a natureza humana, apartada entre altruísmo e violência, poderia gerar ótima reflexão, no entanto os criadores não se aprofundam nos impasses filosóficos do herói.

Em consequência, A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília se atém à constatação de desigualdades e vícios humanos, desinteressando-se pela compreensão desses fenômenos. Nenhum personagem possui dimensão moral ou psicológica, limitando-se a funções específicas de roteiro (vilão ou mocinho, herói ou vítima). Talvez a única figura dotada de real ambiguidade seja o mágico De Ambrosiis, capaz de transitar entre as forças da luz e da escuridão. Não por acaso, o roteiro hesita quanto ao destino do professor na segunda metade, relegando-o a uma função menor. A necessidade autoimposta de clareza quanto às mensagens impede que a equipe se aprofunde em passagens ousadas (o pai que coloca o próprio filho na cadeia). Mattotti possui plena consciência da complexidade de suas discussões, mas prefere não desenvolvê-las. Predominam a beleza das imagens, a saturação das cores, o aspecto lúdico de javalis infláveis e dos cenários de fundo infinito. Prioriza-se a aparência de ingenuidade aos embates de poder em moldes shakespearianos. É preciso tornar o conteúdo mais superficial para dialogar com crianças?

No que diz respeito à animação, o estilo do diretor sobrepõe o traço típico dos desenhos à mão com os recursos dependentes da tecnologia digital. Os humanos possuem pequenos pontos pretos no lugar de olhos, ao passo que os cenários trazem um detalhamento de formas e cores que remetem ao expressionismo de O Gabinete do Dr. Caligari (1920). Nota-se a humildade das formas simplificadas de ursos, diferenciados por detalhes mínimos (um possui barba, o outro, uma barriga maior), além das sugestões discretas de sombras e movimentos. Evitando o realismo dos movimentos e dos pêlos dos animais (algo comum nas obras da DreamWorks e Disney, por exemplo), o autor abandona estes pressupostos e sequer atribui pêlos aos bichos. A própria estética carrega a aparência inocente de um livro de ilustrações para crianças. O ritmo se revela mais contemplativo do que a média de atrações para os pequenos, e a trilha sonora, menos pop e invasiva. Os personagens cartunescos se deslocam por cenários verossímeis, enquanto a maioria das animações apostaria no caminho oposto. O projeto ostenta a vontade de remar contra a maré da pasteurização televisiva, porém sem subverter a forma, nem o discurso. A revolução contra o sistema dominante, neste caso, limita-se à iniciativa dos ursos.

Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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