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Sinopse

Katie Mitchell acaba de ser aceita na faculdade de cinema, e está prestes a cruzar o país numa viagem de carro para chegar ao campus. No entanto, um apocalipse robô coloca o destino da humanidade em risco. Contrariando todas as expectativas, os excêntricos Mitchell serão a última esperança para salvar o mundo de uma inteligência artificial maligna.

Crítica

Há dez anos, um filme como A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (2021) jamais poderia existir. Isso não diz respeito às técnicas de animação, e sim à sociedade retratada: o roteiro satiriza o mundo ultraconectado, dominado por smartphones, tablets e laptops, dependente de WiFi, viciado em redes sociais, filtros de Instagram, TikTok, memes e outros fenômenos da Internet. Os criadores promovem um retrato histérico de tempos histéricos, onde as pessoas têm dificuldade de se concentrar mais de um minuto no mesmo conteúdo antes de passarem ao seguinte. Um letreiro inicial alerta o espectador sobre a presença de imagens estroboscópicas, no entanto, o projeto inteiro evoca uma viagem estroboscópica pelo universo multicolorido e fragmentado da comunicação virtual – para o bem e para o mal. O discurso possui plena consciência dos perigos decorrentes da imersão excessiva nos suportes digitais. Entretanto, defende a possibilidade que estas ferramentas sejam utilizadas de maneira sadia – afinal, estamos falando de uma obra criada em computadores ultramodernos, disponibilizada via plataforma de streaming.

A história sintetiza de maneira eficaz este duelo de gerações e visões de mundo. De um lado, se encontra o pai Rick Mitchell (voz de Danny McBride), sujeito incapaz de usar computadores, amante da carpintaria e portador de uma chave de fenda no bolso da jaqueta, caso necessário. Do outro, se encontra a filha adolescente, Katie Mitchell (Abbi Jacobson), fascinada por cinema, publicações online e vídeos virais com cachorrinhos. A incompreensão nas relações da dupla representa o embate entre o virtual e o analógico, o urbano e o rural, a segurança e o risco, o instinto protetor masculino e patriarcal contra a juventude nerd, geek, plural em gostos e sexualidade (é importante ressaltar que a protagonista jamais manifesta qualquer interesse amoroso ao longo do percurso). A irrupção repentina do apocalipse robô serve a alguns propósitos: primeiro, retirar a família do ambiente doméstico, onde podem desempenhar funções horizontalizadas de combate ao inimigo; segundo, confrontar pai e filha a um obstáculo em comum, para que encontrem suas semelhanças; e terceiro, opor ambas as gerações às maravilhas e às catástrofes da tecnologia avançada. O sentimento misto de fascinação e medo do avanço científico, capaz de ajudar a humanidade ou de se voltar contra ela (como um monstro de Frankenstein), ganha uma bela releitura nesta obra.

De certo modo, esta iniciativa corresponde a uma tentativa da Sony Animation Studios de fornecer sua versão de Os Incríveis (2004), com uma diferença essencial: no filme da Pixar, a família possuía superpoderes face a um mundo banal, e aqui, a família é terrivelmente banal, face a milhares de inimigos superpoderosos. No entanto, a lógica se preserva: a mãe comprova sua incrível força, o pai barrigudo volta a ser ágil, a filha adolescente abraça sua estranheza e singularidade, o garoto menor demonstra a admiração pela irmã. O bebê é substituído por um cachorro, com idêntica função narrativa de alívio cômico, por agir ao contrário do que se esperaria. Em contrapartida, o filme de Michael Rianda e Jeff Rowe se assemelha a uma produção da Pixar acelerada em velocidade 1,5x, com duas vezes mais cores, mais elementos que piscam, mais sobreposição entre imagens, técnicas, texturas e estímulos sonoros. Para os adultos acostumados aos programas infantis contemporâneos, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas será facilmente reconhecido enquanto linguagem e ideologia. Esqueça a possibilidade de contemplação, metáfora ou poesia: aqui, os personagens resolvem suas dores com música no último volume, carros voadores e memes de macacos que gritam.

Em busca de comunicação com o público infantil, adolescente e adulto, o projeto recorre à simplificação dos traços, ao mesmo tempo em que efetua belo trabalho de movimentos, sombras e luzes. Percebe-se a “falsa ingenuidade” deste estilo de design, onde os olhos esbugalhados e expressões exageradas correspondem a uma evidente caricatura do real. Alguns filmes tentam abraçar a humanidade por sua ternura, e outros, por sua loucura – caso deste projeto. Os criadores permitem combinar as técnicas “profissionais”, digamos, com recursos elaborados de construção de cenários e objetos, e os desenhos de aparência amadora (simulando os efeitos do YouTube e dos programas infantis), além de filtros e intervenções na imagem, semelhantes a “adesivos” e rabiscos de arco-íris e dinossauros. Há animação sobre animação sobre animação, em sucessivas camadas, assumidamente saturadas. Durante boa parte do percurso, os criadores sugerem que Katie, cinéfila amadora, poderia estar controlando a direção das imagens, numa singela analogia ao ponto de vista da jovem. Para o público um pouco mais velho, a narrativa acumula referências cinéfilas (Mad Max, o HAL de 2001: Uma Odisseia no Espaço, Disque M para Matar, O Despertar dos Mortos).

Se a pós-modernidade abarca colagens e apropriações, este projeto representa um belo exemplo desta vontade de se apropriar de tudo, do apocalipse robô à paródia de Mark Zuckerberg, sem necessariamente fornecer alguma reflexão a respeito. Neste caso, a combinação improvável de estilos e elementos se torna uma finalidade em si própria – o filme seria uma barulhenta mixed tape. No que diz respeito ao discurso, prega-se a habitual aceitação familiar, a concessão diante de pensamentos distintos, a possibilidade de misturar o vigor excessivo da juventude com a valiosa experiência dos mais velhos. Quanto à tecnologia, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas desenvolve uma espécie de fábula onde a Siri/Alexa (ou PAL, nesta história, com a voz de Olivia Colman) decide dominar o mundo. Ao final, Zuckerberg é poupado, assim como os conglomerados empresariais e o papel do Estado na gestão de crises (o governo está convenientemente ausente da trama). Rianda e Rowe não pretendem nos alertar sobre as derivas da ambição humana, apenas utilizar a fobia clássica de robôs assassinos para desenhar um reencontro entre pai e filha. O apocalipse pode ser lido enquanto metáfora para os atritos familiares – em outras palavras, dominar a ameaça global significa dominar os atritos internos e garantir a paz entre os Mitchell. Salvam-se as famílias, os valores de ambas as gerações, e também o potencial das criações tecnológicas. Tudo não passou de um divertido pesadelo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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