Crítica

Um homem, uma mulher e a câmera de um cineasta radical, que não torna fácil a vida do espectador, que não lhe carrega no colo como se dele fosse tutor. Júlio Bressane, um dos mais contestadores cineastas de nossa cinematografia, apresenta com seu recente filme, A Erva do Rato, outra de suas adaptações anti-convencionais, aqui utilizando como base dois contos de Machado de Assis. Bressane não se curva aos artistas que toma como ponto de partida, não só busca a linha narrativa que lhe permita passar histórias do papel para as telas, como que num processo de transferência automática. Bressane potencializa signos, reinventa a narrativa, mistura gêneros, transmuta personagens físicos em sua câmera, subverte narradores e lhes dá papéis tácteis e visíveis.

Selton Melo e Alessandra Negrini vivem em A Erva do Rato este casal, que promete “viver junto para sempre” no início do filme. O que lhes une não é o amor, que tanto mede a saúde das relações em produções mais convencionais, e sim a dor, a fragmentação que não lhes permite viverem sós. Aceitam-se mutuamente por não poderem ser plenos sozinhos. Ele passa os dias ditando conhecimentos a ela, que anota tudo em cadernos que se acumulam sobre a mesa. Falam sobre venenos, inclusive sobre um chamado de “Erva do Rato” que, segundo ele, não tem cura, mas que durante uma pesquisa, ela descobre ter a dita planta, em si própria, o veneno e seu antídoto. De qualquer forma, ele consegue uma subserviente ouvinte e replicadora. Ela arranja alguém que lhe proteja, não importa a qual custo. Ser escrava dos desejos do homem não lhe é problema. Ele começa a retratá-la, a fotografar sua intimidade, seus seios, suas pernas e sua vulva, objeto de desejo masculino. O sexo nunca se consuma na tela, o desejo é visto através das fotos, do corpo da mulher em preto e branco.

Eis que surge o rato, primeiro roendo as fotos da nudez dela, depois se atrevendo a explorar eroticamente o corpo que o homem só possuí através do registro estático das fotos. O rato é como o intruso entre eles, ou como a personificação do sentimento que desestabiliza o casal, uma vez que traz a ela uma enfermidade e a ele uma obsessão doentia, não se sabe se movida pelo ciúme ou plena em si mesmo. Ele primeiro o quer morto, depois o deseja vivo, para torturá-lo, ou seja, não basta a morte de seu, digamos, rival, é preciso a violência e a barbárie para que haja satisfação. Bressane reforça tudo isto, esta história de duas pessoas que pensam se completarem, com um clima pesado, um lento e progressivo desenvolvimento. O som, muito importante e presente, ora amplia o sentido da imagem, ora soa anacrônico, uma vez que desde roupas até a decoração da casa, tudo vibra como se estivéssemos no início do século passado, e não raro ouvimos barulhos de carros, buzinas e outras sonoridades que estabelecem este choque temporal entre imagem e som.

A Erva do Rato é um filme de atmosfera, mas que não nega sua narrativa, fugidia dos padrões, é certo, coerente com a carreira que Bressane desenvolveu até aqui. As imagens, conjunção da fotografia inspirada de Walter Carvalho e do belíssimo trabalho de câmera de seu filho, Lula Carvalho, não por acaso dois dos melhores profissionais brasileiros na área, carregam todo o peso contido nos personagens, que parecem mover-se alheios ao mundo, encerrados dentro de suas próprias existências imperfeitas. O clima hipnótico que Bressane impõe durante todo o filme faz com que mergulhemos com menos cautela nos personagens, dispensando questionamentos corriqueiros, como os “quandos, ondes e porquês”. E se resta a Bressane carregar o rótulo de vanguardista, de homem de difícil compreensão, a última imagem de A Erva do Rato diz claramente que quando vemos um objeto torto, há a possibilidade de ao invés de este estar desalinhado, que estejamos nós com o olhar deslocado, fora do eixo, impossibilitados em nossa arrogância de assumir o desnível de nossa percepção. Belíssimo filme.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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