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Sinopse

Antônio Justa, em Maracanaú (CE), é um bairro que surge a partir da colônia fundada ali nos anos 1940 para abrigar pessoas com hanseníase. Os descendentes dos primeiros moradores vivem em ocupações irregulares que estão sendo vítimas da especulação imobiliária.

Crítica

É difícil determinar ao certo o caminho que A Colônia (2021) deseja percorrer. A cena inicial, apresentando um áudio institucional do “leprosário" Antônio Justa, no Ceará, remete aos filmes historiográficos, baseados na riqueza do material de arquivo. O registro explica a utilização deste espaço de isolamento, sua composição em alas, a solução encontrada a partir de 1942 para lidar com os doentes da hanseníase. Ora, quando o espectador acredita estar diante da exposição fatual de um local pouco conhecido nacionalmente, os materiais de arquivo se encerram no longa-metragem. A partir deste ponto, os cineastas Virgínia Pinho e Mozart Freire preferem compreender o impacto da instituição na vida cotidiana da vizinhança. O passado seria compreendido, portanto, enquanto reflexo inevitável no presente, de maneira linear, contínua e possivelmente determinista. Julgando pelos cômodos vazios, o silêncio nas alas e os poucos internos, as dependências se convertem num ambiente de nostalgia, e também de precariedade. O foco se volta a outro aspecto: não o que houve décadas atrás, e sim a maneira como cuidamos de nosso legado, e a evolução insuficiente em relação às políticas públicas.

Então, nova rasteira no espectador: o roteiro elege uma protagonista, nova moradora do bairro, buscando uma casa para morar enquanto conversa com os habitantes de longas décadas no Maracanaú. Eles se sentam no bar, fazem piadas. Acompanhamos as visitas com corretores, a mudança ao imóvel escolhido. Talvez o documentário vise, neste caso, um olhar despojado à renovação entre as estruturas antigas e os novos internos, que chegam sem a lembrança do centro de tratamento para doentes. O choque entre gerações constituiria um foco central na abordagem dos dois períodos. Mas o discurso tampouco se aprofunda na figura desta mulher, nem do amigo acostumado ao bairro, ou ainda da profissional de saúde que atua na instituição. Em termos de direção, roteiro e montagem, o projeto possui um foco amplo: ora busca flanar sem rumos precisos pelo local, captando o dia a dia dos moradores; ora segue a médica numa visita guiada de caráter turístico: “Aqui a gente tem a sala de enfermagem…”. Às vezes, procura captar conversas despretensiosas, porém em outros momentos, guia os indivíduos para obter a temática desejada pelas câmeras: “Como era aqui, nas antigas?”, pergunta a nova moradora. “Como era aqui naquela época?”, questiona a médica a uma das únicas internas restantes. 

A indefinição conceitual se transmite à estética do filme. A imagem possui um estranho posicionamento, sempre próximo demais das mesas de conversa, embora tente passar despercebida e soar invisível. Uma criança chega a evocar a presença do dispositivo, e a vizinha fica contente de ver as mazelas do bairro retratadas naquilo que estima ser uma reportagem para a televisão. A tal distância, seria comum que a câmera interagisse com os personagens, permitindo ações direto às lentes — o que não implicaria na necessidade de uma entrevista clássica, é claro. No entanto, as falas condicionadas dos protagonistas incomodam pelo agenciamento de uma realidade que nunca aparenta totalmente fictícia, nem espontânea por completo. A parada do rapaz de bicicleta em frente a um parque de diversões fechado, nos terços exatos do enquadramento; e a busca pelas datas de início da colônia num livro da época soam encenadas, estimuladas, enquadradas para tal finalidade. O filho mostra um vídeo ao pai no celular, e então um plano de detalhe revela à perfeição o conteúdo no aparelho. A inserção de trechos criados pelos autores pode atribuir uma força interessante aos documentários, em contraste com as partes abertas ao acaso. Em contrapartida, perturba a vontade de disfarçar um naturalismo forjado pela direção. 

A respeito dos moradores do bairro, dos internos da colônia e daqueles que partiram da instituição, conheceremos pouco. Ao contrário dos três ou quatro protagonistas, muito dispostos em conversar sobre o tema central da obra, os restantes oferecem respostas lacônicas, pouco aprofundadas, quanto à experiência no local. O filme se completa com jovens compondo hip hop e idosos em apresentações artísticas, quando a mise en scène finge se descolar do tema que persegue a todo custo, e encontra apenas esporadicamente. O espectador termina a sessão sem compreender em profundidade o impacto emocional da reclusão na vida dos internos, a maneira como a medicina tratava e trata a hanseníase, o impacto cultural de uma instituição do gênero na vida da cidade. Desconhecemos os recursos financeiros, a postura dos governadores e prefeitos de ontem e hoje, a lembrança evocada pelos filhos e netos de internos. Falta material de arquivo, falta percorrer o dia a dia da colônia sem a ajuda de uma visita guiada, falta se aproximar das raras fotos do local, presas à parede. Resta a curiosa sensação de que os criadores se situam distantes do tema que pretendem apreender, apesar de se encontrarem literalmente no interior deste espaço médico. Ressente-se uma pesquisa aprofundada em materiais que poderiam, inclusive, fornecer novas possibilidades de articulação à montagem.

Ressalvas à parte, A Colônia transmite um olhar humanizado e empático aos idosos que habitam o local, sem instrumentalizá-los na condição de vítimas de um sistema, ou de portadores de uma condição médica particular. Os olhares de uma mulher em seu quarto silencioso e a bela sequência da massagem nas mãos da residente oferecem uma beleza potente, ainda que discreta, dispersa pelo longa-metragem. A introdução de uma trilha sonora rítmica e forte rompe com o teor solene dos documentários informativos, e evita contemplar a colônia com simples nostalgia. Em termos políticos, Freire e Pinho poderiam ser muito mais assertivos em seu posicionamento, mergulhando nas implicações sociológicas, econômicas e culturais da instituição de saúde. Ao final, os moradores comemoram “77 anos de luta” em uma festa, mas seria esta uma luta para que a Antônio Justa apenas continue? Ou então, para que melhore, se transforme, incorpore novos moradores, novos equipamentos médicos? Seria a luta por novos recursos, por reconhecimento institucional, pelo fim do preconceito contra os portadores dessa patologia? Por melhores salários dos trabalhadores, pela expansão do local? De dentro das alas e dos quartos, o olhar prefere se voltar ao pôr do sol no bairro, às canções entoadas aqui e acolá. O filme se mantém muito perto e muito longe de objeto de estudo.

Filme visto online na 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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