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Sinopse

Desempregado, um publicitário começa a perseguir sinistramente os novos moradores de sua antiga casa.

Crítica

Neste suspense, os diretores David Pastor e Àlex Pastor partem de um ponto de vista interessante dentro do subgênero dos intrusos que manipulam a vida de famílias perfeitas. Nestas narrativas, costuma-se trabalhar com vizinhos psicopatas, forasteiros sedutores ou homens ciumentos, que veem na conquista da esposa alheia uma forma de troféu de sua masculinidade. Existe um pouco de todos estes ingredientes na composição de Javier Muñoz (Javier Gutiérrez), um publicitário decadente e desempregado. No entanto, a dupla de cineastas prefere construir um homem em plena crise de meia idade, decepcionado por não atingir a idealização da vida burguesa que sempre construiu em seus spots de televisão. No início, pelo menos, a aproximação entre Javier e Tomás (Mario Casas), executivo jovem e bem-sucedido que ocupa o grande apartamento onde o publicitário morava, ocorre pela chave da competição masculina. O protagonista ao mesmo tempo ama e odeia, admira e inveja seu substituto. A ideia de que afetividade dos homens heterossexuais seria de natureza homossexual (eles admiram tudo o que é masculino, forte, viril) se traduz muito bem na união entre os dois.

A questão do ponto de vista também é bem resolvida inicialmente. O espectador é colocado em posição de ignorância: descobrimos os planos de Javier à medida que são executados, observando-os de fora. Seria fácil tornar o público cúmplice das ações perversas, porém os diretores preferem que não nos identifiquemos com o sujeito. Assim, testemunhamos a invasão progressiva na vida alheia pelos olhos do voyeur, do fetichista – escolha pertinente na história de alguém que admira a vida alheia à distância. Na primeira metade do filme, os irmãos Pastor não nos convidam a compartilhar a mente doentia de Javier, porém nos colocam na posição privilegiada de observá-lo ao vivo, executando atos cada vez mais condenáveis. Ao invés de parceiros no crime, tornamo-nos testemunhas oniscientes: ninguém tem acesso a tantas informações a respeito das atividades secretas do personagem central quanto o espectador. Compreende-se que a Netflix tenha investido neste projeto, que sublinha tanto a popularidade crescente do audiovisual espanhol na plataforma quanto atualiza a premissa cada vez mais popular do intruso na casa dos ricos – uma ideia recém recompensada com o Oscar por Parasita (2019), ainda que na roupagem mais convencional da psicopatia.

No entanto, passado a introdução competente, o roteiro começa a revelar alguns problemas. O caminho para as armadilhas de Javier é facilitado até demais: os novos moradores do apartamento não trocam a fechadura, os computadores estão ligados e sem senha, a área de trabalho traz uma pasta “Acidente” facilmente acessível, os celulares alheios estão à disposição, a primeira gaveta aberta contém informações valiosas sobre o adversário, reações a venenos e alergias ocorrem em questão de segundos. Ao que tudo indica, o protagonista jamais havia praticado atos desta natureza antes, no entanto o filme o aproxima de um “psicopata americano” de notável eficiência. A simplicidade com que se manipula sprays de pimenta soa conveniente demais: os diretores e roteiristas privilegiaram o efeito espetacular das reviravoltas ao invés da plausibilidade delas dentro da trama. Não se constrói muito bem as chegadas e saídas no prédio, a passagem do tempo e muito menos o espaço do apartamento de Javier/Tomás, fundamental à trama. É possível que, através do título genérico “A Casa”, a Netflix Brasil tenha buscado uma aproximação ainda maior com Parasita e outras estruturas em que a classe social se reflete na geografia dos espaços – como o espanhol O Poço (2019), outro sucesso do serviço de streaming. No entanto, os cineastas não fazem uso inteligente do imóvel.

Conforma a trama avança, a construção psicológica do protagonista se revela inconsistente, e mesmo contraditória. Por que ele se aproxima de Tomás, afinal? Ele quer se tornar um amigo, vivendo novamente entre os ricos e frequentando o espaço querido de seu apartamento? Possui certo fascínio pelo representante do sucesso que ele teve no passado? Deseja roubar o status quo do inimigo para beneficiar sua própria família? Pretende roubar a esposa e filha do concorrente para si? Todas essas possibilidades seriam justificáveis dentro da estrutura do suspense psicológico, porém não sobrepostas na mesma narrativa. Partindo de um sujeito fragilizado psicologicamente, A Casa (2020) trata de introduzir Javier nos moldes genéricos de vilão, do tipo que faz de tudo para prejudicar os demais pelo simples prazer de fazê-lo. Ele não ganha nada com isso, nem parece obter um prazer particular nesta busca. De certo modo, o invasor passa a desempenhar sucessivos golpes porque os roteiristas o desejam, como se o acréscimo tornasse a história ainda mais empolgante. Por mais talentoso que seja o Javier Gutiérrez, o ator tampouco consegue exprimir um perfil coeso, capaz de justificar tantos movimentos de (auto)sabotagem ao longo da trama.

Em meio aos prazeres sádicos do personagem e do filme, os diretores lançam alguns temas seríssimos que não pretendem desenvolver. A narrativa introduz a cumplicidade com atos de pedofilia, algo que desaparece do enredo sem deixar marcas, como se não possuísse gravidade. Além disso, a narrativa abandona a família de Javier com a mesma facilidade que o protagonista o faz. Compreende-se que o homem aparentemente frio e calculista desdenhe da esposa e do filho adolescente (ainda que o desapego ocorra de maneira abrupta). No entanto, não se justifica que o filme faça o mesmo. O olhar da direção jamais se importa com esses coadjuvantes, vitimizados pelas manipulações de Javier. Aos poucos, a câmera demonstra identificação crescente com o homem obsessivo, encantando-se demais com sua perversidade para analisar as consequências desta nas vidas alheias. Não há qualquer problema em retratar a vida de um anti-herói, ou de um sujeito eticamente contestável, contanto que o filme tome distância em relação a este personagem – seja pelo humor, pelo grotesco, por metáforas, pela atenção dada aos demais pontos de vida. A Casa deleita-se com o prazer narrativo de destruir duas famílias impunemente. A desumanidade de Javier contamina a experiência como um todo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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