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Sinopse

Uma frígida e jovem dona de casa enfrenta problemas em seu relacionamento, apesar de seguir amando seu marido. Como válvula de escape, decide passar suas tardes trabalhando como prostituta em um bordel.

Crítica

A câmera está focada nos lances finais da escada de um prédio. Os pés de uma jovem sobem os degraus. Ela para no piso. Os mesmos pés parecem hesitar e dar meia-volta, mas ela segue em frente, entra no apartamento e dá início à sua vida dupla. A sequência dura menos de um minuto. Porém, no clima onírico perpetuado por A Bela da Tarde, essa cena sutil pode ser essencial como pista para o espectador tentar entender se tudo o que Séverine (Catherine Deneuve) vive é sonho, realidade ou uma mistura de ambos. É justamente por não dar respostas conclusivas a tal questão que o clássico de Luis Buñuel merece aplausos e cada vez mais revisitas, pois não é uma obra fechada, já que amplia o leque de possibilidades de análise.

Frígida dentro de casa, Séverine, a protagonista, é uma mulher que parece entediada com sua própria existência. Passa os dias inventando desculpas para não dormir com o marido, Pierre (Jean Sorel). Dá passeios com ele ou amigas. Na maior parte do tempo, senta no sofá e pensa. No quê? Vai saber. Certo dia, ela encontra um amigo devasso do marido, que conta sobre um prostíbulo discreto comandado pela Madame Anaïs (Geneviève Page). A jovem fica curiosa e vai até o endereço. Logo, se une à dona do espaço e vira uma de suas meninas. Porém, só pode durante a semana, das duas às cinco da tarde. Séverine se torna a Belle de Jour, a Bela da Tarde.

A primeira cena é a de Séverine num passeio com o companheiro. Ele afirma que a ama. Ela dá uma resposta atravessada, fechada. Ele se irrita, manda parar a carruagem, obriga a mulher a descer e ordena a seus cocheiros que a chicoteiem amarrada sob uma árvore. Não bastasse a violência do ato, enquanto Séverine suplica para pararem, o rapaz dá outra ordem: que a estuprem. Um deles tira os cintos da calça, abre a roupa e a agarra por trás. Se no início ela parece sentir repulsa, logo seu semblante dá lugar a uma sensação de prazer. Em seguida o corte mostra que esse é apenas um pensamento, um sonho. A jovem está sentada na sala de casa quando o marido chega. Séverine não quer nada com ele na cama, mas o sexo não lhe sai da cabeça.

Porém, assim como na casa de Madame Anaïs, o sexo comum não lhe interessa. A personagem de Deneuve gosta de brutalidade. Tanto que recusa seu primeiro cliente para, apenas após sua chefe ser incisiva, logo voltar e fazer o que for na cama. Séverine gosta de mandos e desmandos. Porém, essa submissão não parece cem por cento confiável. Por trás de suas delicadas feições, do corpo esculpido, dos olhos inocentes e de sua fragilidade no trato social, ela só obedece a quem quer. De preferência, alguém com mãos pesadas. O mais incrível de tudo isso é que Buñuel não julga sua protagonista. Ele mostra como a dona de casa/prostituta age. Ou ela pensa que assim o faz.

Afinal, mesmo aqueles mundos que a cercam, tanto o da casa quanto o do prostíbulo, parecem faz de conta. Madame Anaïs pode ser mais experiente, mais velha, porém é tão bela e classuda quanto Séverine. Há uma atração entre as duas. Apenas um simples beijo já deixa clara tal situação. Porém, seu marido, Pierre, é o estereotipo do príncipe encantado. Bonito, rico, bem-sucedido, galante e prestativo. O que ela poderia querer está nos dois lados dessa história. O próprio cliente por quem a atração se torna maior, um capanga criminoso com crises de raiva e impaciência, parece um produto criado por sua mente fantasiosa. Ainda mais se repararmos em sua arcada dentária totalmente fora dos padrões. Será que a própria Séverine vive naquele mundo ou sua mente é tão criativa que ela pode nem ser dona de casa ou prostituta?

Muito disso se deve não somente à belíssima direção de Buñuel, mas também à jovem Catherine Deneuve. Já com carreira em ascensão após o sucesso de filmes como Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) e Repulsa ao Sexo (1965) – este ironicamente outro papel em que o sexo é sua força-motriz –, a atriz, com apenas 23 anos, demonstra um domínio completo da personagem. Da casta e inocente dona de casa que fala baixo à prostituta voraz que não tem medo de revelar seus desejos, Deneuve transita com naturalidade naquele papel que a sociedade machista adora classificar como “uma dama na sociedade, mas uma puta na cama”. Na história do cinema, talvez essa seja a personagem que mais personifica – e vai além – desse clichê.

O surrealismo é embalado pelas cenas no campo, com cavalos, cocheiros e sexo pesado. Armas, tiros, sangue. Séverine vive isso ou apenas gostaria de? Ela é uma mulher tão fechada nos seus sentimentos e vontades que precisa explodir de forma violenta para dar vazão à sua sexualidade? Talvez, numa análise sociológica e de gênero, a história de Séverine e sua repressão sexual é a de tantas mulheres que vivem sob a ótica do machismo no mundo de ontem e hoje. Porém, A Bela da Tarde é mais que apenas sexo, feminismo latente ou qualquer outra discussão psicológica. É cinema-arte de verdade. Daqueles que provoca, instiga, incita à discussão. Não há certo ou errado para Buñuel. O que importa mesmo é o pensar. E quantas peças artísticas se tornam imortais para chegarem a tal ponto? Talvez esse filme seja um dos maiores exemplos disso. Obra-prima de seu realizador e deleite para o público. Seja aquele que gosta de falar de sexo ou não.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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