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Sinopse

Depois de descobrir seus papéis de adoção, João decide voltar à cidadezinha onde nasceu e buscar pela mãe biológica. Ainda sofrendo com a dor da perda do pai e com uma crise no casamento, ele deseja descobrir a razão de ter sido abandonado após o parto. No entanto, a busca pelas raízes revela não apenas uma história de separação, mas um segredo encoberto há décadas.

Crítica

Quiseram as convenções do cinema que um personagem tossindo signifique morte iminente. Talvez por nossa dificuldade de mostrar no cinema pessoas tossindo, sangrando ou usando o vaso sanitário (os velhos tabus do corpo), uma mulher enjoada significa gravidez e a tosse significa doença grave. “Eu só engasgei”, explica João ao telefone, mas sabemos que ele está mentindo. Um frasco de comprimidos confirma que lhe falta pouco tempo, porque personagens de cinema tampouco tomam vitaminas, antialérgicos e afins. Pois bem, João está morrendo, e por isso decide buscar a mãe biológica, que o abandonou quarenta anos mais cedo. A porta de entrada para o projeto é um mote tradicionalmente melodramático, porém os diretores Severino Neto e Raphael de Carvalho mantêm o som sóbrio, privilegiando as sugestões às lágrimas.

A Batalha de Shangri-lá apresenta uma produção bem cuidada, com aparência refinada e notável acabamento em pós-produção. Existe um belo trabalho de iluminação, especialmente em cenas noturnas, competente captação e edição sonora, além da montagem que trabalha com elipses simples, porém eficazes, nas quais cada pergunta é respondida por outra cena. Quando João questiona, no portão de uma casa, se pode falar com o morador, a resposta é dada pelo corte da edição, com o protagonista entrando no quintal. O aspecto granulado da imagem e a constante música de tensão servem a diluir a aparência de drama dentro das ferramentas do suspense. O espectador demora a juntar todas as peças de um segredo familiar, mas sabe que a busca pela mãe trará aspectos mais sombrios do que a simples reparação afetiva. Existe um crime à espreita, algo lembrado pela metáfora reincidente do revólver e do cachorro atropelado.

O único aspecto estético realmente incômodo se encontra no trabalho excessivamente tremido da câmera, chacoalhando a ponto de perder o personagem do enquadramento. Esta abordagem costuma ser empregada em cenas de ação, imprimindo tom de urgência, e mesmo assim representa um clichê pouco produtivo dentro do gênero. Ora, neste projeto, a câmera treme demais até quando o personagem está deitado na cama, dormindo. Isso acaba por chamar atenção excessiva à direção e fotografia, tirando o foco da trama. Mesmo que a imagem se acalme um pouco rumo ao final, ela jamais se desprende desta impressão de um voyeurismo quase caricato, com a trepidação da imagem refletindo a captação à distância, com teleobjetivas. A profundidade de campo reduzidíssima completa a impressão de um estetismo que se sobrepõe ao aspecto humano da trama.

Felizmente, o projeto conta com bons atores, como o sempre confiável Gustavo Machado e Maria Ceiça, ambos capazes de trabalhar com naturalidade uma sucessão de cenas de desconforto, sem forçar uma dramaticidade evidente pelo texto. Ingra Lyberato é uma atriz expressiva, apresentando cuidadoso trabalho nos olhares e gestos, no entanto a voz doce demais enfraquece uma personagem marcada por traumas profundos, e revelando pela primeira vez um segredo de grande importância. Além disso, a escolha de uma atriz de 53 anos, de aparência muito mais jovem, para interpretar a mãe do ator de 46 anos, soa bastante deslocada: Lyberato mais parece a irmã ou esposa do protagonista. O discreto trabalho de maquiagem e penteado não serve para transmitir com verossimilhança um conflito de gerações fundamental à trama.

Além disso, alguns elementos de roteiro são frágeis demais, como o cartão da companhia de táxi indicando que Madalena é necessariamente taxista (ora, ela poderia trabalhar em qualquer outra função dentro da empresa, ou mesmo não trabalhar mais lá), a desconfiança de João de que sua mãe biológica possa ser uma mulher negra, e mesmo a situação mal resolvida com o pastor, algo óbvio desde o primeiro contato com o personagem. O símbolo dos cachorros, passando do animal morto ao filhote para sugerir renascimento e superação do luto, também é sublinhada em excesso – quem leva um cachorro de presente ao primeiro jantar na casa de desconhecidos? Tropeços de roteiro à parte, o filme demonstra qualidades sobretudo na direção, o que desperta interesse nos próximos projetos da dupla de cineastas. É uma pena que o título A Batalha de Shangri-lá, equivocadamente exótico e pouco pertinente ao projeto como um todo, não favoreça o seu percurso comercial daqui para frente.

Filme visto no 27º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
5
Alex Gonçalves
6
MÉDIA
5.5

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