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Sinopse

Leila é uma mulher curda e síria de 30 anos de idade. Sua batalha como prefeita de Raqqa é reconstruir a capital original do Estado Islâmico, isso em meio a um mundo essencial e excessivamente masculino. Ela ainda tenta promover a reconciliação e estabelecer a democracia.

Crítica

9 Dias em Raqqa (2020) é um filme sobre um livro sobre uma entrevista sobre uma guerra. A multiplicação de pontos de vista proporciona um dos aspectos mais sedutores deste documentário: o diretor Xavier de Lauzanne acompanha a escritora Marine de Tilly em viagem à Síria, onde deve encontrar a prefeita da cidade, Leïla Mustapha, mulher curda de apenas 30 anos de idade. Xavier filma Marine que faz perguntas à tradutora, reformulando-as por sua vez à representante política. Uma pluralidade de vozes se sobrepõe: a jovem síria conta sua experiência à frente de Raqqa, destruída pela guerra; a escritora busca uma compreensão psicológica desta mulher, investigando os obstáculos específicos no percurso de uma liderança feminina, e o cineasta busca captar os choques e convergências deste encontro entre mulheres. A intérprete emite opiniões pessoais, e o fotógrafo francês acrescenta seu olhar à cena pela produção em still. O documentário nasce de uma estrutura metalinguística em abismo, espécie de boneca russa cujas camadas se conectam e se desvendam ao longo de apenas nove dias.

O diretor facilita a tarefa de identificação para o espectador ao posicionar sua câmera enquanto olhar externo, descobrindo a Síria junto ao público. Xavier e Marine nada têm a ensinar ao espectador: eles assumem a posição humilde de observadores e ouvintes atentos, dispostos a absorver ensinamentos. Imagina-se que o cineasta não tenha previsto diversas interações e paisagens encontradas, adaptando-se diante dos riscos de uma cidade atacada, e da inesperada beleza dos pequenos comércios funcionando em meio aos destroços. O filme proporciona a experiência de um processo em andamento, explicando a dificuldade de deslocamento dentro do país, de chegada a Raqqa, de adentrar prédios públicos. Os bastidores constituem o foco tanto quanto as conversas com Leïla: a dificuldade de filmar e de ocupar os espaços se torna um objeto de estudo em si mesmo. As sequências traduzem a mistura de curiosidade e receio: a cada parada numa praça pública ou rotatória depredada, a equipe é observada à distância pelos passantes reunidos, e depois volta apressada para o carro. A prefeita dorme na municipalidade vizinha, por questões de segurança, e oculta seu verdadeiro endereço por receio de represálias dos terroristas.

Enquanto isso, a narrativa se organiza em torno da resistência feminina: Marine é seduzida pela presença improvável de uma jovem mulher chefiando Raqqa, descobrindo em paralelo que a líder das Forças Democráticas sírias também é uma mulher. O fotógrafo, o diretor e o pai são deixados em segundo plano para se escutar o que a mãe, a militar e a tradutora têm a dizer. Elas estão cientes de sua excepcionalidade dentro deste cenário masculino, orgulhando-se da façanha de suas posições de chefia. Entretanto, a escritora lamenta o fato que a intensa vida pública impeça a coexistência de uma vida privada: a prefeita passa manhã, tarde e noite discutindo a reconstrução da cidade, sem tempo para amigos, amores ou lazer. A ponderação sobre as contrapartidas das conquistas femininas (será que os homens também abrem mão dos casamentos e dos passeios para liderarem revoluções?) acrescenta uma leitura interessante à narrativa. A direção enxerga com otimismo a resiliência de um feminismo articulado em meio às sociedades árabes, lutando contra o grupo terrorista mais sangrento da atualidade. Questionada se tem medo de exercer sua função, a representante responde que sim, porém não a ponto de ser paralisada por ele. Leïla encontra um limite entre a coragem e a prudência.

Esteticamente, 9 Dias em Raqqa evita o retrato sensacionalista das guerras com crianças chorando e corpos acumulados. Tendo chegado ao país muito depois dos ataques norte-americanos e das ofensivas de Bashar al-Assad, o diretor encontra uma população de certo modo adaptada a esta paisagem urbana. Vendedores ambulantes oferecem seus produtos em frente a prédios destruídos, idosos leem o jornal sentados sobre aquilo que, algum dia, deve ter sido a residência de alguém. O olhar se despe da piedade e da surpresa face à calamidade: o filme se encontra num estágio seguinte, tentando compreender os motores da reconstrução. As imagens impressionam pelo rigor da composição, pelas cores fortes e o contraste acentuado, embora sem embelezar as ruínas, nem introduzir iluminação artificial em espaços internos. Ao invés dos violinos e pianos tristes de tantos documentários sobre guerras, este projeto opta por um jazz sensual e uma trilha sonora ritmada rumo à conclusão. Cria-se a impressão de um olhar incerto, sempre à espreita, coeso em suas decisões estéticas da primeira à última cena.

Ao final, os autores fogem aos dados explicativos, datas, números, nomes de líderes revolucionários e contrarrevolucionários. Felizmente, este não é um produto para exportação, do tipo que explica aos ocidentais a existência de bombardeios num país ignorado pela grande mídia. Lauzanne sustenta a condição de aprendiz, assumindo a responsabilidade de coletar impressões para formar um mosaico subjetivo e metonímico, onde uma única mulher representa a possibilidade de renascimento de uma cidade destruída pelos homens de poder. Leïla jamais revela dados surpreendentes a respeito da política local, nem se converte em líder nata. Através dos dias, ela se transforma na figura universal da mulher trabalhadora, preocupada com a família e com os vizinhos, fazendo o melhor que pode dentro de um cenário de dificuldades. O filme parte da curiosidade e da excepcionalidade (uma mulher chefiando o berço do Estado Islâmico na Síria) para se concluir com a aproximação e o senso de empatia. A prefeita se assemelha a tantas mães, tias, irmãs e amigas de nossa convivência. Somos levados a enxergar nestas mulheres uma semente de esperança para a transformação política.

Filme visto no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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