Crítica


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Sinopse

Rumo a uma festa no interior, uma atriz teatral solicita uma condução via aplicativo. Conduzida por uma mulher, ela embarca numa viagem cada vez mais estranha e aterrorizante.

Crítica

O curta-metragem traz uma reunião dos sonhos para aficionados e estudiosos dos filmes de gênero no Brasil. Gilda Nomacce e Luciana Paes têm se consagrado, em produções distintas, como as atrizes mais versáteis e corajosas do cinema antinaturalista, sem medo do excessivo, do simbólico, do caricatural. A primeira alimentava um monstro pegajoso na banheira de casa em Nua por Dentro do Couro (2015), de Lucas Sá, enquanto a segunda entoava baladas sobre mães enterrando seus bebês em Sinfonia da Necrópole (2014), de Juliana Rojas. Paes e Nomacce transitam com mesma facilidade pelo humor do incômodo, pela comicidade física, pelo drama e pelo estranhamento apropriado ao suspense. Por isso, uma trama prometendo algum confronto sangrento, tendo-as como únicas personagens em cena (Seria uma contra a outra? Ambas contra outras pessoas? Contra alguma força sobrenatural?), desperta curiosidade. Esta iniciativa atesta a capacidade do cinema nacional em criar seu próprio star system dentro da produção de gênero - talvez apenas a comédia brasileira possua tamanha identificação com astros e estrelas.

O roteiro surpreende ao concentrar a maior parte das ações dentro de um carro, onde uma motorista que efetua corridas por aplicativo (Paes) responde à chamada de Kátia (Nomacce), uma atriz de carreira respeitável em peças de teatro pouco populares. A dinâmica consiste numa oposição entre mundos: os conhecimentos populares da primeira contra a erudição da segunda, a agressividade na fala da condutora contra a polidez burguesa da passageira, a intrusão de uma contra a tentativa de autopreservação da outra. Ainda que se insira no terror, graças à variedade que o gênero é capaz de abraçar, o projeto procura aproximar, literalmente, duas atrizes para vê-las duelar num ringue de onde não podem escapar – afinal, o carro se encontra em movimento. Durante cerca de dois terços da narrativa, não há qualquer perigo externo para além da presença destas personalidades grandiloquentes fadadas ao choque. O diretor Fernando Sanches coloca dois peixes Beta dentro de um pequeno aquário, esperando que se destruam. Há notável voyeurismo no dispositivo cênico (devido ao ponto de vista externo às duas mulheres), concebido sob medida aos talentos de ambas as intérpretes.

O princípio da gradação também constitui uma ferramenta de interesse. Os minúsculos conflitos no interior do veículo se intensificam, se somam, até a aguardada explosão. Neste sentido, funcionam muito bem dentro da estrutura do curta-metragem. Mesmo assim, a principal qualidade de 5 Estrelas (2020) se encontra na capacidade de imaginar elementos extra-cena. Trata-se de uma tensão alimentada por conflitos evocados nos diálogos, porém ausentes nas imagens. Kátia se tornou conhecida como “a mulher do meme”, embora nunca vejamos a piada em questão. Ela faz referência a uma telenovela onde teria trabalhado, sobre a qual saberemos pouco, evocando com carinho atrizes fictícias. Já a motorista punk (creditada somente desta maneira) possui um passado complicado com os homens, tendo usado a arma Tábata em ocasiões que o espectador precisará conceber por conta própria. O diretor faz apelo ao repertório de seu interlocutor, solicitando que preencha as inúmeras lacunas do texto, inclusive no importante clímax à beira da estrada. O terror possui a capacidade de encarar o tabu e o indesejado (mostrando sangue, mortes, torturas), mas Sanches acredita que as imagens mais assustadoras venham da imaginação do espectador. O domínio do diretor se comprova pelo equilíbrio entre os prazeres do trash – que vão desde a composição das personagens até a importância de Tábata – e a elegância do suspense de personagens.

A única decepção provém da conclusão abrupta, quando o filme confessa que jamais pretendeu se encerrar por completo. Os letreiros informam que as duas personagens retornam no próximo longa-metragem de Sanches, o que transforma este filme no teaser do projeto futuro. Ele certamente desperta interesse para uma interação maior entre as personagens, sobretudo se o cineasta mantiver tamanho apelo ao uso do hors champs e do terror sugerido. No entanto, o discurso poderia encontrar alternativas para se concluir enquanto obra autônoma, ainda que os rumos de Kátia e da motorista ficassem em aberto. Pode-se dizer que a narrativa se suspende, ao invés de se concluir, limitando o curta-metragem à função ingrata de mini-longa, ou de aperitivo para o filme “de verdade” que virá em breve. Ora, o curta permite experimentações próprias de narrativas e linguagem, sem se restringir ao fragmento de uma história maior. Ressalvas à parte, o cineasta planta a semente para um filme de terror aguardado – e quantos projetos nacionais conseguem despertar tamanha expectativa? 5 Estrelas constitui uma ferramenta de autopromoção, mas também um veículo calibrado aos talentos de Sanches, Nomacce e Paes.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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