Crítica


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Sinopse

Miguel encontra a enigmática irmã depois da morte de sua mãe. Ele decide passar uns tempos com ela, tomando contato com uma personalidade singular. Conflitos vão precipitar perguntas e suposições relativas ao passado.

Crítica

Como sugere o título, 2 (2018) baseia-se na dinâmica exclusiva entre dois personagens: Miguel (Naomi Nero) e Lis (Barbara Riethe). Leva algum tempo até o filme confirmar a relação entre ambos: a princípio, o rapaz aparenta chegar ao apartamento para alugar um quarto, ou talvez concretizar um encontro amoroso desconfortável (ela comenta as fotos do visitante nas redes sociais). Na verdade, trata-se de meios-irmãos que se conhecem de fato após uma tragédia. Alguns fatores importantes jamais serão justificados por completo: a necessidade de Miguel se mudar para a casa da desconhecida, a aceitação desta, que claramente não deseja receber o intruso, e o fato de se conhecerem tão pouco até então. Como ele aceitou a hospedagem sem saber se haveria espaço para ele no apartamento? Curiosamente, a partir deste momento, não abandonam o apartamento. Assim como os personagens, a câmera permanece presa ao ambiente. A eventual saída rápida, ocultada por uma elipse, ocorre para desestressar, e logo voltarem ao recinto. O projeto sustenta uma dinâmica claustrofóbica e tóxica entre duas figuras incomodadas com a interação num local pequeno.

O cenário constitui uma escolha muito fraca para a dinâmica do filme. Não há espaço hábil para criar movimentações interessantes ou ângulos diversos – infelizmente, a dificuldade se traduz em cada cena. A direção de fotografia é comprometida pela repetição das imagens no sofá, da escada em espiral ou da admiração distante dos personagens na cozinha (porque a imagem não pode adentrar este espaço?). Dentro do banheiro, a câmera se espreme num contra-plongée desengonçado nas pernas de Miguel. Passando pelo corredor, disputa espaço com a atriz. Para uma produção condicionada a uma locação única, teria sido fundamental que o espaço fornecesse recursos de linguagem suficientes, ou então que se explorasse de maneira radical a ideia da clausura, pelo conjunto de lentes, sugestões hors champs e afins. Em contrapartida, o filme prossegue com sua narrativa como se nunca percebesse as limitações de cada sequência, supondo se encontrar dentro de um local com possibilidades satisfatórias de luz, som e enquadramento. Diante dos recursos escassos, teria sido fundamental encontrar atalhos criativos a estes problemas, ao invés de fingir que não existem.

A direção transparece outras debilidades. A correção de cores deixa os personagens ora azulados, ora rosados; o som nos corredores carrega o eco de uma captação de som pouco cuidadosa; a montagem repete fades à exaustão no término de cada cena; os enquadramentos fecham-se demais em elementos sem função narrativa aparente (Miguel tomando água, Lis entrelaçando os dedos). A trilha sonora exagera as dores de cabeça do rapaz e o medo da garota com a ajuda de violinos ostensivos ou sugestões óbvias de suspense. Em consequência, 2 não transmite a impressão de um filme polido. O subgênero do huis clos (a clausura de protagonistas num ambiente único) deu origem a algumas das maiores obras-primas do cinema, a exemplo de O Anjo Exterminador (1962) e Doze Homens e uma Sentença (1957). Ora, estes casos traziam roteiros afinados, com interações múltiplas e inesperadas entre os prisioneiros. No caso do suspense brasileiro, a tônica é dominada somente pela invasão de privacidade: um personagem folheia as fotografias secretas do outro, este descobre o ato e explode, então o primeiro se desculpa. Depois, nova invasão de fotografias, computadores, telefones celulares, camas. Mais explosões e pedidos de desculpas. Ao invés de imaginar presenças paternas ameaçadoras e criaturas possivelmente sobrenaturais no banheiro, teria sido mais útil constatar o perigo que esta dupla representa por si mesma.

A este propósito, a questão fantástica ou de horror nunca se resolve bem. Os barulhos sombrios desaparecem sem deixar traço aparente, enquanto a montagem fragmenta a importantíssima chegada de um terceiro personagem. Todas as infrações de Miguel e Lis são esquecidas na cena seguinte. Em paralelo, os traumas de um e de outro são reconhecidos e tolerados (ao invés de recalcados) através de um conformismo inverossímil. Resta a impressão de uma trama inconsequente, capaz de sugerir temas muito graves, apenas para atenuá-los na cena seguinte. Em se tratando de uma ciranda marcada por repetidos flashes de agressão, abuso sexual, estupro, incesto, violência doméstica, perseguição e slut shaming, a resolução dos conflitos soa desproporcionalmente leve. Além disso, a imagem fantasmática de mulheres sufocadas pelos parceiros, em câmera lenta em meio a névoas sensuais, carrega um fetichismo contraproducente a respeito da exploração do corpo feminino – algo confirmado mais tarde, numa inesperada brincadeira entre irmãos. A representação destas mães fetichistas, convertidas em pôsteres, sonhos e delírios eróticos, é marcada por uma carga de erotismo perverso (porque carregado de manipulação) jamais explorada a fundo pelo roteiro. Esta poderia ser uma fábula freudiana, ao invés de mera brincadeira de gêneros.

Nos papéis principais, Naomi Nero e Barbara Riethe são intérpretes muito aptos a desempenharem seus personagens, embora o roteiro não colabore com a tarefa. Sugere-se que a garota seria uma compositora genial, mas jamais percebemos de fato sua relação com a música (nem a composição mágica de uma obra de encomenda). O meio-irmão seria uma mistura de sociopata libidinoso e adolescente indiferente, sem possibilidade de transição entre ambos. Em se tratando de um suspense, as cenas precisariam surtir consequências diretas nas ações seguintes, ao invés de apostarem no acúmulo intercambiável de abusos, delírios maternos e imagens dos gatos pelo imóvel. Falta dinâmica a 2, filme de diálogos explicados, frases de teor artificial (“Não sei o que é pior: perder as pessoas quando elas morrem ou quando ainda estão vivas”) e figuras transitando entre a seriedade sepulcral e a comicidade (“Angel Xup Xup”). O cineasta Marcelo Presotto parte de uma premissa plena de potencial em termos de jogo cênico, podendo arquitetar reviravoltas no controle da narrativa: quem detém o poder de fato, entre a dona da casa e o intruso que pode partir a qualquer momento? Entretanto, deparamo-nos com dois jovens inconsequentes, provocando um ao outro pela simples necessidade de produzir conflito. Se houvesse um segundo quarto e trancas nas portas, talvez a metade dos dilemas desaparecesse. Se eles saíssem de casa para atividades cotidianas (pré-pandêmicas, é claro), o conflito terminaria. Afinal, por que Miguel precisa ficar hospedado naquele apartamento mesmo?

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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