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Sinopse

Três jovens amigos de infância (dois deles soldados) estão em viagem pela Europa. Num trem em direção a Paris, eles são surpreendidos pela presença de um terrorista, que rende os passageiros com um fuzil AK-47. Buscando impedir a morte dos civis, eles decidem agir de alguma forma para conter a ameaça.

Crítica

Uma das coisas mais valorizadas no cinema atual são as temidas palavras “inspirado em um evento real”. A coisa se tornou uma muleta tão forte a ponto de virar título até de thriller de ficção (Baseado em Fatos Reais, 2017, de Roman Polanski), mas se em algum momento foi visto como um reforço a uma história que se queria contar, por outro acabou servindo de desculpa para qualquer um atrás apenas de uma boa ideia, por mais equivocada que seja essa avaliação. Porém, este apego ao realismo alcança agora um novo nível, muito mais indigesto e constrangedor, justamente nas mãos de um realizador até então bastante respeitado, mas que aqui demonstra uma total inaptidão entre o exercício narrativo e o simples discurso de pregação. Afinal, 15h17: Trem para Paris nada mais é do que isso: uma tentativa frustrada do diretor Clint Eastwood pregar sua conservadora e superada visão de mundo através de um episódio que somente com muita boa vontade pode ser considerado válido de maiores interesses.

A sinopse adianta: “três americanos descobrem uma tentativa de ataque terrorista enquanto estavam à bordo de um trem rumo à capital francesa”. Com um argumento como esse, até se poderia imaginar Liam Neeson como protagonista e um produto de ação dinâmico a ponto de tirar o fôlego da audiência. Pois o que encontramos em 15h17: Trem para Paris não poderia estar mais distante. Pra começar, Eastwood decide abrir mão de atores profissionais para interpretarem os protagonistas, escalando os próprios rapazes que vivenciaram esses fatos para atuarem em frente às câmeras como eles mesmos. Alek Skarlatos, Anthony Sadler e Spencer Stone estão ali, revivendo suas próprias ações. As linhas entre documentário e ficção já foram alargadas e distorcidas o suficiente em alguns anos para cá, mas aqui não há nenhum esforço neste sentido. Não há nada documental no que se vê em cena. Há apenas atores ruins em atuações péssimas. O fato deles terem passado por aquelas mesmas situações em suas vidas privadas, bizarramente, acaba soando apenas como uma mera coincidência.

O que, de fato, aconteceu? Em agosto de 2015, após algumas semanas como mochileiros pela Europa, três amigos – Alek, Anthony e Spencer – pegaram um trem de Bruxelas até Paris. Durante a viagem, um homem carregando armas e explosivos, após um bom tempo no banheiro – uma demora suficiente para despertar a atenção de alguns dos demais passageiros – saiu disposto a assassinar quem surgisse em sua frente e a explodir a si mesmo dentro do trem. Uma outra pessoa percebe que há algo de errado, e após ser atacada por este desconhecido, o alarme se instaura naquele vagão. Um pânico que logo capta o interesse do trio de rapazes, principalmente de Alek, militar, e de Spencer, sargento da aeronáutica. Os dois se jogam para cima do maníaco, e após alguns minutos de luta, o ataque não só é frustrado como depois se descobre que o homem não possuía sequer motivações terroristas – era um maluco, portanto. Anthony, por sua vez, nada mais é do que um espectador privilegiado de todo esse imbróglio.

Além de não terem feito nada além daquilo para o qual se prepararam durante boa parte das suas vidas, Alek e Spencer, além de Anthony e de Chris Norman (o primeiro a perceber que algo sério estava prestes a ocorrer), foram homenageados pelo presidente da França, François Hollande, enquanto que os amigos foram recebidos com festa e muita pompa pelo presidente norte-americano Barack Obama. E agora chegam ao ápice deste ocorrido com um filme dirigido por ninguém menos do que Clint Eastwood. No entanto, mesmo com pouco mais de uma hora e meia de duração, o cineasta dedica não mais do que os 15 minutos finais do seu longa a esta passagem específica. Até lá, somos convidados a uma narração modorrenta sobre a infância dos rapazes, a monotonia da vida no interior, o começo de suas rotinas no exército e na aeronáutica, além de desfilar uma lista extensa e constrangedora de estereótipos sobre estrangeiros. Nada emocionante e bastante cansativo, a ponto de levar qualquer um dos lado de cá da tela a se questionar qual o objetivo de uma composição como essa, que tanto promete e muito pouco entrega.

Mas o pior é o descaso de Eastwood quanto ao material que tinha em mãos. Ele passa por famílias desfeitas, por um apreço exagerado pela liberação de armas, por um sistema educacional falho, por uma obstinação militar exagerada e por um enaltecimento desproporcional aos méritos dos Estados Unidos frente ao resto do mundo, um discurso que simplesmente não encontra mais lugar em dias como os de hoje. A escolha de atores cômicos, como Jenna Fischer (The Office, 2005-2013), Thomas Lennon (Funny or Die, 2010-2011) e Tony Hale (Veep, 2012-2017), para papeis coadjuvantes, além do mais, torna todo o conjunto ainda mais anacrônico. Assim, ao invés de enaltecer um lance de sorte que poderia ter terminado muito mal, mas que, por uma junção de coincidências, acabou tendo um resultado mais do que surpreendente, o diretor apenas demonstra uma total inaptidão em se adaptar a uma nova forma de olhar cinematográfico, e, ao invés de inovar, tudo que consegue é deixar transparecer uma visão ultrapassada e, felizmente, já em extinção.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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