Muitos viram a cara quando a palavra “política” é pronunciada. Sobretudo, os que a associam simplesmente ao âmbito político partidário, às polarizações dos últimos anos e por aí vai. É bom frisar, sempre: tudo é político. Inclusive essa ojeriza ao tema é fruto de uma enorme conjunção de fatores de ordem…política. Até mesmo a escolha do tema principal para esse balanço do 13º Festival Varilux de Cinema Francês é um ato deliberadamente político. Afinal, tudo é política. Em 2022, o evento que há 13 anos vem propiciando um contato fundamental do público brasileiro com o cinema francês selecionou 17 filmes e dois clássicos para integrar a sua seleção. Como grande novidade, também tivemos séries projetadas nas telonas de Rio de Janeiro e São Paulo, ou seja, o evento está abrindo seu escopo de atuação para compreender melhor uma cadeia ainda mais vasta, que costumamos aglutinar conceitualmente como “audiovisual”. E dentro desse recorte sempre instigante, que certamente contém filmes para públicos e gostos bastante variados – um dos acertos do evento que pretende oferecer um painel diverso do que se faz cinematograficamente na França –, o que chamou a atenção foi o conteúdo político dos discursos de vários longas-metragens. Tendo em vista que filmes são documentos de época, isso faz bastante sentido como recorte.

AS CAUSAS E AS ANGÚSTIAS FEMININAS
Mesmo com poucos filmes dirigidos por mulheres – apenas O Acontecimento (2021) e Os Jovens Amantes (2021) – a seleção 2022 do Festival Varilux do Cinema Francês teve questões femininas como assuntos recorrentes. Em O Acontecimento, a discussão sobre o direito da mulher de decidir pelo aborto quando descobre uma gravidez indesejada ou inconveniente. Ambientado nos anos 1960, o longa-metragem oferece um retrato da solidão crescente de uma jovem que se vê, ao mesmo tempo, isolada e criminalizada. Já Os Jovens Amantes utiliza uma abordagem menos cortante para apontar outro dado posto pelo machismo nosso de cada dia. O cinema, que sempre naturalizou o relacionamento de homens mais velhos com mulheres mais jovens, desta vez nos apresenta uma inversão interessante de dinâmica: uma setentona vivendo o amor por um quarentão. Não é preciso que alguém levante a bandeira para compreendermos o quão relevante é contar essa história que quebra paradigmas sintomáticos de uma sociedade patriarcal. Já Contratempos (2021), o melhor filme do 13º Festival Varilux de Cinema Francês, coloca em evidência uma mulher exaurida por conta do acúmulo praticamente desumano de responsabilidades e decisões a serem tomadas em pouco tempo. Ela se torna o retrato do esgotamento de quem não possui uma rede de apoio.

Em Esperando Bojangles (2021) e O Segredo de Madeleine Collins (2021) há pontuações sobre saúde mental. Curiosamente, ambas as personagens acometidas por distúrbios são vividas por Virginie Efira, atriz que contrapõe com vivacidade e leveza a enfermidade da protagonista no primeiro filme e que empresta o seu talento para construir uma personalidade mais enigmática no segundo dos longas-metragens citados. De todo modo, os dois fornecem panoramas que confrontam estigmas, sobretudo quando o assunto é o tão essencial estado mental dos personagens que nem sempre conseguem um modo saudável de lidar com atribulações e sofrimentos. Claro que, entre tantos filmes selecionados para o 13º Festival Varilux de Cinema Francês, nem tudo são flores quanto à representação feminina. Em Entre Rosas (2021), por exemplo, a sempre competente Catherine Frot vive uma herdeira prestes a falir o negócio baseado no cultivo de flores que herdou do pai. Uma pena que até mesmo suas atitudes mais controversas – como chantagear ex-presidiários que reincidem no crime para ajudá-la – não sejam observadas com, um pouquinho que seja, de senso crítico, cabendo mais na categoria “meios torpes que são justificados pelos fins”.

DAVI, GOLIAS, FASCISMO E O ESTADO DAS COISAS
Há outros recortes politicamente relevantes no 13º Festival Varilux de Cinema Francês. Em Golias (2021), a batalha contra gigantes do ramo de agrotóxicos coloca em evidência essa relação desproposital de poder encarregada de perpetuar mecanismos de opressão. Pode mais quem pode pagar mais. E nessa sociedade os sofredores são sempre os pequenos. Já desmontando outras ramificações disso está O Destino de Haffman (2021), longa-metragem que volta ao passado para tocar na ainda aberta ferida do colaboracionismo francês com os nazistas que avançavam impiedosamente pela Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Questões pessoais como humanismo, ambição desmedida e ética nos ajudam a ponderar sobre um painel socialmente diverso e sintomático de determinadas construções coletivas. Daniel AuteuilGilles Lellouche e Sara Giraudeau estão excelentes nesse filme em que o horror nem sempre é manifestado em palavras, mas por expressões e pelos menores gestos. Em O Mundo de Ontem (2021) surge uma questão de ordem ética muito recorrente na contemporaneidade: vale tudo para salvaguardar a democracia, até mesmo cometer um ato pouco democrático e republicano? É valido mandar matar um adversário que, prestes a ser presidente, pode mergulhar toda uma nação num manancial de obscurantismo e retrocesso?

Cena de “Contratempos”

Sobre O Mundo de Ontem, conversamos com o cineasta Distème (a entrevista completa você confere aqui), inclusive, sobre a violência como subterfúgio para reequilibrar a balança. Já no bonitinho Um Pequeno Grande Plano (2021), o astro Louis Garrel volta à cadeira de diretor para contar uma história em que adultos estão presos a uma obsolescência “programada”, enquanto as novas gerações demonstram bem mais preocupações efetivas com as questões de ordem ambiental. Tanto a letargia dos mais velhos quando as iniciativas dos mais novos são características enfatizadas a fim de lançar um olhar esperançoso ao futuro, ainda que a visão utilizada para isso seja bastante leve e com toques evidentes de um idealismo romântico. Por fim, Sentinela do Sul oferece ao espectador a possibilidade de compreender os efeitos nocivos das iniciativas bélicas dentro de uma composição geopolítica em que países dominantes se lançam em campanhas “humanitárias” nas regiões menos favorecidas economicamente. A opção do diretor Mathieu Gérault é mostrar como os instrumentos da guerra, neste caso os soldados rasos, também são vítimas brutais dessa atitude escroque que os países imperialistas utilizam para expandir seus territórios. Portanto, o 13º Festival Varilux de Cinema Francês chamou a atenção não apenas pela qualidade das produções selecionadas, por conseguir aglutinar vários discursos políticos que atestam importantes movimentações globais.
:: CONFIRA AQUI TUDO SOBRE O 13º FESTIVAL VARILUX DE CINEMA FRANCÊS ::

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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