6 abr

Opinião :: Cinema em tempos de Diversidade

Quando Hattie McDaniel ganhou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, por seu desempenho como Mammy em …E O Vento Levou (1939) – a primeira intérprete negra a ser premiada pela Academia – ela foi proibida de entrar no hotel onde a cerimônia ocorreu, e somente após muita discussão permitiram que ela adentrasse o local apenas para receber seu troféu, sendo mandada embora logo em seguida. É de se imaginar, no entanto, que este tenha sido o começo de uma mudança em relação a como Hollywood enxergava seus atores afrodescendentes, mas ledo engano: McDaniel até seguiu trabalhando por mais uma década, e ainda que tenha ganho o National Board of Review de Melhor Atuação (best acting) por Nascida para o Mal (1942), o cartaz do filme nem exibia o seu nome, preferindo ostentar em destaque os das atrizes brancas Bette Davis e Olivia de Havilland. Sem esquecer que, a maioria dos personagens que ela interpretou nos anos seguintes, mesmo com um Oscar no currículo, continuaram sendo o da empregada, da cozinheira ou da escrava. O quanto isso mudou, de fato, em quase cem anos? Infelizmente, muito pouco.

A atriz Hattie McDaniel, a primeira intérprete – homem ou mulher – negra a ganhar um Oscar

O emprego da hashtag #OscarSoWhite (Oscar tão branco) ganhou força em 2016, quando nenhum dos 20 intérpretes indicados naquele ano era uma pessoa de cor. E não chegava a ser nenhuma surpresa: era o segundo ano que a mesma composição étnica se repetia – somente em 2014, dois anos antes, os atores Chiwetel Ejiofor, Barkhad Abdi e Lupita Nyong’o (ela premiada) foram lembrados. Nos dois anos seguintes – 2015 e 2016 – Eddie Redmayne conseguiu duas indicações (ganhou uma), Mark Ruffalo também foi duplamente indicado, e novatos na premiação como Brie Larson, Alicia Vikander, J.K. Simmons, Patricia Arquette e Mark Rylance foram reconhecidos em suas primeiras indicações. Em 2017, após muito protesto, nada menos do que sete atores de cor (impressionante, mas ainda minoria) foram indicados, enquanto que Viola Davis e Mahershala Ali foram premiados (ambos como coadjuvante). Em 2018, no entanto, foram apenas 4 lembrados (nenhum reconhecido), e em 2019, apesar de terem sido apenas três pessoas de cor entre os 20 finalistas, dois deles foram agraciados a estatueta dourada (Mahershala Ali e Regina King). Já nesse 2020, por fim, houve apenas uma indicada (Cynthia Erivo), que não levou.

Se medidas que promoviam a inclusão de um grupo de votantes mais diverso foram tomadas pela diretoria da Academia, por quê, então, a participação de atores afrodescendentes não se tornou mais frequente? E veja bem, poderíamos ir ainda mais longe: onde estão as realizadoras? Por quê que em 2020 e em 2019 nenhuma mulher foi indicada na categoria de Melhor Direção, e a única, em mais de 90 anos de premiação, foi Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror (2009) – um filme absolutamente masculino, com apenas uma única personagem feminina de destaque – há mais de uma década? E se em 2017 houve a vitória do primeiro longa LGBT – Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) – como Melhor Filme, qual a razão de nos três anos seguintes termos tido apenas uma trinca de títulos com personagens homossexuais entre os protagonistas (um em 2018, dois em 2019), sendo que nenhum saiu vitorioso na disputa principal? Mulheres, gays e negros. Alguns os chamam de minorias. Mas a verdade é que esse está longe de ser o caso.

Moonlight ganhou o Oscar de Melhor Filme: LGBT & negro

Voltando apenas à situação dos artistas negros, que é o foco deste texto. Em 2020, algum desavisado poderia afirmar: mas nenhum intérprete afrodescendente ofereceu performance suficientemente boa para se colocar entre as preferidas da Academia, por isso que não foram indicados. Simples, não? Como seria bom se fosse verdade, não é mesmo? Porém, uma análise mais detalhada dos fatos revela outra história. Afinal, o que dizer de Eddie Murphy, Da’Vine Joy Randolph e Wesley Snipes (todos por Meu Nome é Dolemite, 2019), Lupita Nyong’o (Nós, 2019), Jamie Foxx (Luta por Justiça, 2019), Alfre Woodard (Clemency, 2019), Kelvin Harrison Jr. e Octavia Spencer (ambos por Luce, 2019), Taylor Russell e Sterling K. Brown (ambos por Waves, 2019), Jonathan Majors (The Last Black Man in San Francisco, 2019), Wendell Pierce (Burning Cane, 2019), Andre Holland (High Flying Bird, 2019), e Jodie Turner-Smith e Daniel Kaluuya (ambos por Queen & Slim, 2019)? Nada menos do que 15 nomes, e todos indicados em ao menos uma premiação de peso na última temporada (Globo de Ouro, SAG, Critics Choice, Gotham, Independent Spirit). Como se pode concluir, apenas a maior de todas essas festas continua fechando suas portas aos intérpretes negros.

Eddie Murphy em Meu Nome é Dolemite: o filme teve mais de 30 vitórias e 50 indicações, mas não foi suficiente para o Oscar

Também não podemos nos esquecer de mencionar premiações exclusivas para profissionais afrodescendentes, como a Black Reel, Associação dos Críticos de Cinema Afro-americanos dos EUA e o Círculo dos Críticos Negros de Cinema dos EUA. Foram essas agremiações as únicas a destacarem filmes como Poderes Extraordinários (2018), Little Woods (2018) ou The Black Godfather (2019), por exemplo. O que ainda impede que estes títulos – e estas performances – alcancem uma maior visibilidade e reconhecimento? O racismo velado segue em pauta? É preciso que o #OscarSoWhite volte à pauta? Ou, quem sabe, o melhor caminho é esperar por mais uma centena de anos, de braços cruzados, e ficar torcendo para que, enfim, uma mudança caia do céu?

Poucas semanas atrás a AppleTV+ lançou seu primeiro longa-metragem original, e o filme escolhido para essa estreia foi O Banqueiro (2020), que narrava a história de dois homens negros – interpretados por Anthony Mackie e Samuel L. Jackson – que se tornaram milionários ao se aventurarem por um negócio até então dominado por brancos – o sistema bancário – e, por tamanha ‘ousadia’, acabaram presos. Não muito tempo depois, Octavia Spencer estrelou a minissérie em quatro episódios da Netflix A Vida e a História de Madam C.J. Walker (2020), sobre a trajetória da primeira mulher negra a se tornar milionária nos Estados Unidos. Dois fatos verídicos – um ambientado nos anos 1960, o outro no início do século XX – que, no entanto, nunca haviam sido abordados por Hollywood. Se os protagonistas fossem brancos, e responsáveis por feitos de tamanha envergadura, seria possível imaginar que permaneceriam ignorados pela maior parte da população por tanto tempo?

A verdadeira Madame C.J. Walker (à esquerda) e a atriz Octavia Spencer (à direita)

Pelo jeito, aquilo que muitos preferem fechar os olhos e fingir que não existe está se revelando a galinha dos ovos de ouro entre os mais antenados – aqui no Papo de Cinema, por exemplo, tanto O Banqueiro quanto A Vida e a História de Madam C.J. Walker estão entre os títulos mais procurados do último mês. Estaria o futuro na mão das plataformas de streaming? Esta é uma previsão que ninguém gostaria de ver concretizada tão cedo. Mas, no que diz respeito à uma maior diversidade no ambiente ficcional, essa não é mais uma hipótese: é, sim, uma realidade. Porém, como qualquer outra empresa prestadora de serviços, o que determina se tal tendência irá se confirmar como prioridade é a lei do mercado. Portanto, aos espectadores, o que resta é consumir tais projetos, exigir qualidade dos mesmos e reconhecer os acertos – assim como os deslizes também não podem ser ignorados. Somente assim uma incorreção histórica poderá chegar ao fim. Antes tarde do que nunca.

Robledo Milani

é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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