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O livro Cinefilia, de Antoine de Baecque, esmiúça os bastidores do nascimento da cinefilia moderna, na França pós-Segunda Guerra Mundial, em meio à consagração da influência das revistas especializadas. É uma leitura altamente recomendada, inclusive como forma de acessar as disputas ferrenhas entre os pensadores com perspectivas e filiações completamente distintas. Esse tipo de contenda sempre fez parte de qualquer área de conhecimento, talvez seja algo inerente à competitividade humana – psicólogos e psicanalistas provavelmente têm boas teses sobre o tema. Então, é relativamente natural que entre cinéfilos, apaixonados por cinema – às vezes acima de qualquer coisa –, igualmente haja rusgas alimentadas por divergências. Aliás, esse tipo de fricção é essencial. O ofício de crítico, por exemplo, se trata exatamente de “colocar em crise”, problematizar no sentido complexo do termo. Sem esse tipo de impulso, de choque, possivelmente observaríamos um terreno medíocre feito de exemplares quase inofensivos.

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Dito isso, é vital separar o joio do trigo. A palavra “discussão” não necessariamente precisa vir carregada de negatividade, como seu entendimento imediato pode sinalizar. Num tempo como o nosso, delineado nas interações via redes sociais, em que barreiras entre emissores e receptores se tornaram inexistentes, quando muito translúcidas, eclodem frequentemente debates acalorados sobre determinados filmes ou filmografias. Basta dar uma espiada no Facebook do seu amigo cinéfilo, ou mesmo da página daquele crítico propenso a tretas intermináveis, e você vai constatar isso. Por um lado, é louvável essa vontade de dispender energia em argumentações sobre o cinema, algo que mostra que esse garboso senhor com mais de 100 anos está vivo e plenamente na ativa. Todavia, um olhar acurado às entrelinhas geralmente revela motivações bem menos nobres nessas rinhas ferrenhas. O meio cinéfilo pode ser altamente tóxico – para utilizar uma palavra da moda – justamente por conta da necessidade de alguns de reafirmar posições e garantir lugares privilegiados. Algo que, diga-se, fere a beleza do conhecimento.

Vamos partir do pressuposto de que saber é poder. Vivemos em sociedades fortemente estratificadas, em que o comando está desproporcionalmente concentrado nas mãos de alguns poucos. Quanto mais influente e perspicaz, claro, desde que isso seja devidamente reconhecido por seus pares, mais gerência o sujeito detém sobre o meio circundante. O que me parece vital é não se regozijar orgulhosamente da posse de faculdades adquiridas, mas trabalhar para que estas diminuam as desigualdades, ou seja, democratiza-las com boas doses de generosidade. Mas, infelizmente, o que mais se percebe por aí são cinéfilos altamente qualificados, com um domínio enorme das várias vertentes e escolas, que não se sentem impelidos a compartilhar. Isto significaria perder um valorizado espaço de privilégio. São esses mesmos, com raríssimas exceções, que acabam desmerecendo interlocutores discordantes nessas rusgas propagadas nas redes sociais. São apegados demais ao status que os ressalta. Nem vamos nos ater sobre aqueles que parecem se orgulhar de falar impropérios ou polemizar à toa. Esses merecem um artigo próprio.

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Atualmente há uma ampla discussão sobre a necessidade de pulverizar os saberes, inclusive os concernentes ao audiovisual. É preciso que mais áreas da sociedade, principalmente as marginalizadas, sejam contempladas com possibilidades de gerar suas narrativas e acessar o conhecimento antes restrito ao alcance de meia dúzia de “eleitos”. Mas, novamente recorrendo ao lamento, é necessário dizer que coisas demais ainda precisam mudar. A toxicidade do meio cinéfilo é nutrida, entre outras coisas, pela insegurança de determinados membros que sentem receio de perder suas posições dentro de grupos específicos. Convenhamos: que bobagem! Com isso se perde tanto, pois a arte permite múltiplas leituras e prismas, não devendo ser utilizada como domínio de “escolhidos”, autoelevados a patamares acima do bem e do mal. Uma dica é: onde não houver possibilidade real de interlocução, com garantias de debates sadios e espaços igualitários de fala a escuta, não te demores. Isso vai lhe poupar tempo e evitar raiva.

Você já esteve em sala de aula e experimentou a sensação de que o professor não aceitava, de forma alguma, ser contrariado, porque ele se colocava realmente sobre qualquer suspeita? Pois, se isso é inadmissível nesse ambiente de trocas – afinal, se trata de um terreno de construção constante de saber, não de disseminação vertical do mesmo –, o que diremos de uma simples conversa sobre filmes ou aspectos que lhes pareça interessante debater com alguém? Meu olhar é distinto do seu, afinal de contas temos experiências não apenas de cinema, mas de vida, diferentes. Mais ou menos densas. Diferentes. Até diante de alguém que argumenta com impropérios e falácias é preciso não agir como se fossemos eurocêntricos prontos a dominar uma nação supostamente primitiva prestes a ser colonizada pela nossa magnitude. Me poupem. Esse comportamento chulo evita uma das coisas mais bonitas da troca de experiências: o aprendizado com o entendimento alheio, este pessoal e somente parcialmente transferível.

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Então, identificou aquele amigo ou amiga elevando o tom de voz para impor leituras? Caia fora, de preferência de fininho, sem tanto alarde. Num mundo tão desigual, não precisamos de mais gente fomentando abismos, defendendo cega e surdamente suas posições. O conhecimento precisa ser valorizado, especialmente dentro de uma democracia frágil como a brasileira, na qual ele é frequentemente vilipendiado e quase criminalizado. Uma vez compartilhado, o discernimento empodera e diminui abismos. Desconfie particularmente de quem “se vende” como um entendedor absoluto de cinema, área impossível de ser completamente dominada, arisca a esses intentos totalizantes exatamente por conta de capacidade infinita de desdobrar-se a partir do olhar de cada espectador. Entre os cinéfilos há uma turma bastante acintosa de sujeitos desesperados para doutrinar o outro. Que tal, você aí que gosta de colocar-se acima dos contrapontos, disponibilizar essa bagagem a alguém ou a grupos, não a utilizar como arma para tornar esse mundo mais capenga? Pois, ninguém é foda como pensa. É suficiente tentarmos ser menos ignorantes e mais generosos todos os dias. Menos chorume, mais conteúdo. Porém, sem pedantismo, por favor.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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