A arte penetra na nossa vida com uma potência muito transformadora. Da mesma forma, a sensibilidade de alguns artistas adquire uma espécie de caráter fundamental tão importante à nossa concepção de vida que é possível sentir-se profundamente triste pela partida de alguém que nunca vimos. Recentemente, por conta dos estudos para revisar meu curso sobre um dos meus cineastas favoritos, Ingmar Bergman, me peguei lembrando da circunstância em que descobri que o sueco tinha morrido. Naquela época, estagiava à tarde e aproveitava as manhãs mais ou menos ociosas para cuidar da saúde e, contrário ao meu sedentarismo atual, fazer exercícios físicos numa academia. A rotina de chegar, trocar de roupa, cumprimentar os instrutores e aquecer na esteira parecia imperturbável por qualquer eventualidade. Era um dia como qualquer outro, daqueles carregados de repetição, marcado por uma monotonia que tem lá sua beleza e encanto, a despeito da nossa procura por novidades. Já ofegante naquela corrida sem sair do lugar, diante das televisões cuidadosamente instaladas para aliviar o tédio de ficar 20 minutos entre passadas, trotes e corridas desgastantes, o noticiário matinal trazia a manchete pesada: morreu Ingmar Bergman.
Ao saber disso precisei parar imediatamente o exercício para tentar assimilar o choque. Bateu uma vontade imensa de chorar. Algo que apenas viria a compreender adiante, quando menos chacoalhado pela surpresa. Era efetivamente como se um ente querido tivesse partido. E foi. Como é possível sentir dessa maneira pela partida de alguém que sequer conhecemos ao vivo? Eu, que sempre fui um cético romântico, caracterizado por esse paradoxo um tanto estranho e curioso, me peguei diante da importância que aquele sujeito tinha representado para mim até então, papel este que se mantém até hoje como herança intelectual e afetiva. E ele não sabia que tinha me deixado uma fatia considerável de seu espólio. Bergman foi o cineasta que, no começo da minha cinefilia, me mostrou que um mundo inteiro pode estar contido num mero olhar, que o sofrimento não é exceção nesse mundo cruel e angustiantemente, destituído de sentido compatível com a nossa vã expectativa. Ele me sinalizou que o cinema pode reter questões filosófico-existencialistas, que silêncios tendem a ser absurdamente ruidosos e que as mulheres carregam tantos universos. Desde o meu primeiro Bergman, com Morangos Silvestres (1957), eu sabia ter encontrado algo.
Fiquei dias com a sensação pesarosa latejando. E foi exatamente a morte de Ingmar Bergman que me ensinou o quão profundas podem ser as raízes das conexões semeadas pelo cinema. O antes menino sueco caracterizado por traumas da criação luterana rígida, cheio de fantasmas serpenteando por seus labirintos internos, fez das súplicas pessoais e das dúvidas aparentemente intransferíveis o motor de seu cinema inigualável. Hoje em dia a dinâmica entre a Morte e o cavaleiro sobrevivente às Cruzadas e à peste negra em O Sétimo Selo (1956) pode soar caricatural, quase ingênua. Todavia, nos anos 1950 era uma ruptura enorme, tentativa de enfrentar o maior dos medos com poesia e coragem. Não à toa, artistas utilizam obras exatamente para vencer a figura de preto (aqui sem a ceifa), perpetuando-se por meio de suas criações. E foi justamente quando notei que Bergman continuaria vivo enquanto seus filmes existissem, desde eles ecoassem e ressoassem, que a sensação de amargor foi ganhando outros contornos. É possível ressignificar a perda de uma fonte de inspiração desse tamanho porque ela não seca.
O dia em que Ingmar Bergman morreu configurou, portanto, também um aprendizado. Foi-se um amigo que nunca soube da minha existência, mas que me ajudou a compreender melhor esse mundo maluco, a filtrá-lo pelas possibilidades infinitas do cinema. Ainda mais de um tipo que fala uma língua (o sueco) que atualmente me soa como indício de um lirismo ao mesmo tempo duro, realista, avesso às concessões, mas dotado de um insuspeita faculdade de completar algumas lacunas muito íntimas. Aquele pesar todo era porque, independentemente das ciências e das distâncias, a gente é uma soma daquilo que nos compõe em várias esferas. E Bergman é um dos pilares da minha cinefilia, logo, peça vital das paixões que me alavancam. Esse sueco introspectivo até o fim da vida verbalizou a consciência de ter deixado uma obra (teatral, televisiva e cinematográfica) enorme, mas ao preço da negligência afetiva que certamente vitimou as pessoas próximas. Contradições que ora cindem – de um lado o homem, do outro o artista – mas que ora misturam as facetas num redemoinho de ambiguidades que refuta as tolas simplificações que tornam tantos filmes e tanta gente dispensáveis ao longo do nosso caminho.
Ingmar Bergman se tornou uma espécie de mestre a vários outros criadores. Basta ver os documentários e programas televisivos (são vários) que mostram grandes nomes se convertendo momentaneamente em tietes emocionados ao visitarem a casa onde ele morou, na ilha de Fårö. Vaidoso, como boa parte dos artistas, Bergman deve ter aproveitado (inclusive com certo grau de cinismo) toda essa idolatria que talvez não tenha sido suficiente para ele encontrar apaziguamento em meio aos demônios que os fustigavam. Não à toa, o cinema dele apresenta frequentemente os chamados “instantes de felicidade”, aqueles momentos em que, a despeito das turbulências e dos percalços cotidianos, os personagens alcançam um estágio tão efêmero quanto intenso de júbilo e êxtase. Uma fagulha de luz. Claro que, uma vez atravessados por uma admiração desse calibre, tendemos a ser excessivamente românticos e parciais. Mas, gosto de imaginar que Ingmar Bergman soube o quão importante foi, inclusive a quem, como eu, nunca teve a oportunidade de agradecê-lo por seus filmes transformadores. Diante da ciência da contribuição incalculável de Ingmar Bergman a mim, senti-me perdendo um amigo no fatídico 30 de julho de 2007.
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