Como será o ano de 2021 para o cinema? Esta é uma pergunta impossível de responder, especialmente num momento tão delicado em termos de saúde, economia e política. Sequer sabemos quais filmes estarão disponíveis, se as salas de cinema estarão abertas, se as pessoas estarão vacinadas contra o coronavírus, e se a população se sentirá segura para voltar às ruas, às aglomerações, às salas escuras.

Com estes questionamentos em mente, o Papo de Cinema decidiu fazer uma série de quatro matérias especiais para analisar os possíveis rumos do cinema no Brasil em 2021. A primeira parte se concentra nas salas de cinema: de que maneira elas podem responder à insegurança do público? Como resistirão economicamente, depois de tantos meses fechadas, e de que maneira combaterão (ou abraçarão) o streaming?

Para esta discussão inicial, conversamos com dois exibidores experientes: Adhemar Oliveira, sócio e diretor de programação do Espaço Itaú de Cinema, e André Sturm, ex-diretor do MIS – SP, ex-Secretário da Cultura de São Paulo da gestão João Dória/Bruno Covas, e diretor do Petra Belas Artes.

 

O cinema Petra Belas Artes, em São Paulo

 

A situação das salas em janeiro de 2021

 

“Estamos como todo mundo: apanhando feito cachorro magro”, brinca Adhemar Oliveira, a respeito da situação atual das salas de cinema na virada do ano. “A dificuldade foi geral, não importa o tamanho do grupo, nem o número de salas. Ficar dez meses parados é difícil demais. O mecanismo de suspensão de contrato de trabalho de certo modo aliviou o sufoco. A negociação com donos de shopping e com senhorios, no caso dos cinemas de rua, também ajudou. Mas passamos muito tempo fazendo algo diferente do nosso objetivo de exibir. É como se eu fosse agricultor e ficasse o tempo todo arando a terra, mas sem jogar sementes. Isso ferra a cabeça; a experiência foi muito ruim. Mas estamos superando, vamos ver o que acontece com a vacina. Nosso grande problema foi pensar que a crise sanitária duraria dois, três meses. Depois pensamos que seriam apenas mais dois, três meses, e assim por diante”.

 

Passamos muito tempo fazendo algo diferente do nosso objetivo de exibir.

 

“A gente está na expectativa da possibilidade que as salas de cinema voltem a ter público”, diz André Sturm ao traçar um apanhado do grupo Belas Artes no atual momento. “O público estava muito baixo quando os cinemas voltaram a funcionar. Nós até fechamos o cinema durante vinte dias, no final de ano. Demos folga aos funcionários e retornamos agora. Foi um fim de semana fraco, mas não era de se esperar diferente. Agora temos a expectativa de que aos poucos o público retorne, com a perspectiva de vacinação. Em relação ao streaming, estamos muito felizes porque conseguimos criar uma marca a partir do nosso streaming. Ele já é conhecido, não por todas as pessoas, mas pelo público cinéfilo. Temos um número de assinantes crescente, o que mostra que estamos no caminho certo. A distribuidora reduziu muito as atividades em função dos cinemas fechados, mas temos buscado alternativas. Alguns lançamentos ocorreram direto em streaming, por exemplo. O grupo tem essa função de potencializar cada uma dessas funções, uma somando esforços para a outra”.

 

Espaço Itaú de Cinema Augusta, em São Paulo

 

As salas podem mudar de perfil?

 

Questionados sobre possíveis mudanças de perfil nas salas de cinema no processo de reabertura, os exibidores não determinaram nenhuma transformação significativa até então. O Papo de Cinema perguntou se mudariam os títulos selecionados (talvez com mais blockbusters), o valor dos ingressos, a dinâmica de programação (novos horários, novas retrospectivas). Ao que tudo indica, ainda é cedo demais para programar a dinâmica dos próximos meses.

“Temos um perfil, uma personalidade histórica, e é isso que nos motiva e mantém a nossa reputação”, declara Sturm. “A gente não vai mudar a cara da programação. É claro que existe um espectro amplo: nós programamos o primeiro Mulher-Maravilha (2017), por exemplo. Na época, existia a importância de ter uma personagem feminina no papel principal. Inclusive, o filme foi muito bem na época. Depois, programamos o segundo filme por ser uma sequência do primeiro, mas isso não representa uma mudança na linha da programação. Às vezes, alguns filmes mais comerciais dialogam com o público que a gente trabalha”.

 

Hoje não temos muita escolha. Você conta com os filmes à disposição.

 

“Talvez tenhamos mudanças na hora em que isso se formatar”, pondera Oliveira. “Hoje, não temos muita escolha. Você tem os filmes que estão se posicionando para serem exibidos, e você conta com as opções à disposição. Não adianta comprar direitos de filmes, como já fizemos para retrospectivas, no momento em que o resultado numérico de oferta é pequeno. Temos que juntar a fome e a vontade de comer. Posso querer fazer uma grande retrospectiva, mas o custo disso frente ao âmbito da apresentação pode não cobrir os gastos, o que vai gerar mais problemas. Na parte operacional, nós mantivemos toda a nossa equipe, não despedimos ninguém. Temos que passar por isso juntos”.

 

André Sturm

 

Expectativas para a vacinação

 

Uma questão inevitável sobre o futuro das salas de cinema em 2021 diz respeito ao processo de vacinação. Enquanto mais de 50 países já começaram a vacinar a sua população, o Brasil sequer possui um calendário determinado, e faltam insumos. Além disso, a imunização será um processo demorado, e ocorrerá em partes. Para André Sturm, a simples perspectiva de uma vacina à vista tende a trazer otimismo à população, o que se refletirá nas salas de cinema. Adhemar Oliveira adota uma postura mais ponderada a respeito:

“Nós, como cinema, apostamos que o começo da vacinação vai permitir a volta do público ao cinema”, estima Sturm. “O Belas Artes tem um público um pouco mais velho. Nesta região existem muitas pessoas de maior idade, e estas pessoas sumiram, naturalmente, porque têm mais medo da contaminação. Como a vacinação vai começar por elas, aposto que vamos ter um aumento de público quando iniciar a vacinação. Temos uma expectativa boa a respeito. Tenho a sensação de que os primeiros quinze dias de vacinação já vão mudar muito: tanto as pessoas vacinadas vão se sentir liberadas quanto muita gente que ainda não foi vacinada já vai se sentir assim também, porque vai ver que outras pessoas já foram vacinadas, e os riscos diminuíram. O início da vacinação vai ser fundamental”.

 

Não adianta neste momento programar filmes que atraem multidões,
já que as multidões não podem vir.

 

De acordo com Oliveira, “a situação deve mudar com a vacina, mas não fico enxergando este momento enquanto salvação total, porque se trata de um processo. Conforme os cientistas têm falado, a vacinação pode começar, mas vai ser preciso manter os protocolos de segurança até chegar o momento em que será seguro, ou seja, até atingirmos a imunidade de rebanho. Ainda precisamos ver como serão as mutações do vírus. Todo mundo está aprendendo, e isso inclui os cientistas, os médicos. Eu sou leigo, mas leio tudo o que existe. Tomo cuidado, sigo os preceitos, mas também tenho olhar crítico: a recomendação neste momento é de prudência. Não adianta neste momento a gente programar filmes que atraem multidões, já que as multidões não podem vir. É melhor trabalhar devagar, com o que existe, para que as pessoas não percam o hábito de irem ao cinema. Se as pessoas vão voltar, que seja com o espírito de segurança. Quanto aos filmes, não critico a postura dos distribuidores, nem dos produtores, especialmente se não têm pressa para lançar. É claro que eles vão querer guardar para um momento melhor. Como exibidor, a gente sofre com isso, mas entende”.

 

Adhemar Oliveira

 

A segurança dos cinemas durante a pandemia

 

Uma discussão importante acerca do retorno do público às salas de cinema se encontra não apenas na disponibilidade de filmes ou nas permissões de abertura, mas na experiência do cinema durante a pandemia. O fato de as pessoas ficarem num lugar fechado, com ar condicionado, não tornaria o cinema perigoso? Ambos garantem que não, e fornecem diversos argumentos para sustentar a lógica de que os cinemas não apenas são seguros, mas constituem uma das atividades comerciais menos arriscadas para o período atual. Entenda:

“O cinema sofreu ao ser colocado como um lugar muito perigoso. Em outros países, o cinema foi colocado num patamar de periculosidade muito inferior ao de outras atividades comerciais”, sublinha Adhemar Oliveira”. “Estamos programando nos lugares onde as autoridades permitiram. Mesmo com a capacidade reduzida, estamos mantendo as salas abertas. Temos a crença de que estamos fazendo a coisa certa, seguindo padrões científicos de segurança. Assim, não estamos nos colocando em risco, nem colocando ninguém em risco. Mas não temos como saber por quanto tempo isso vai durar, nem como vai ser depois ao certo. A única maneira de prever seria estudando a Gripe Espanhola e todas as pragas que vieram antes dela. As histórias se repetem: durante a Gripe Espanhola, também tiveram discussões entre autoridades dos Estados Unidos quanto à suspensão das festas de fim de ano. Naquela época, também foi um desastre.

Agora, estamos seguindo os protocolos à risca: se pode abrir apenas com 30% de público, vamos abrir com apenas 30% de público. O comportamento é coletivo: se não é implementado coletivamente, desanda, e tivemos muitas quebras nesse comportamento no Brasil ao longo de dez meses. O componente do tipo ‘Eu posso esperar para voltar ao cinema’ foi reforçado pela colocação midiática sobre o perigo das salas. O cinema é muito menos perigoso porque ali você não conversa, não interage com outras pessoas. Existe um protocolo de vendas de ingressos que te isola dentro da sala. A segurança é enorme. Não tem dança, conversa, toque. É claro que, para ter segurança, é preciso o espectador acreditar nisso”.

 

Quem ainda não se convenceu de que o cinema é seguro não vai
mudar de ideia por causa de uma nova campanha.

 

André Sturm relembra as campanhas efetuadas pelo Belas Artes para assegurar o público das seguranças das salas de cinema: “Nós já fizemos, em outubro e novembro, duas pequenas campanhas sozinhos. O setor da exibição é um dos mais divididos que tem. Existem seis associações diferentes, para você ter uma ideia da dificuldade de fazer uma ação conjunta. Nós faríamos uma campanha novamente, com certeza, uns quinze dias depois da vacinação. Agora, não adianta mais: quem ainda não se convenceu de que o cinema é seguro não vai mudar de ideia por causa de uma nova campanha. A gente tem que esperar e depois retomar. Nós reforçamos a questão sobre a segurança do ar condicionado, por exemplo. Em setembro, todas as atividades comerciais estavam abertas, menos o cinema. Isso causou nas pessoas a sensação de que o cinema era o lugar mais perigoso de todos. Pensaram: ‘Se todas as atividades já podem retomar, menos o cinema, então deve ser muito perigoso’. Isso com certeza causou um prejuízo muito triste”.

“Além disso, todo mundo ficou trancado em casa durante seis meses, mais ou menos. Depois, soltou total: as pessoas começaram a ir para os bares, a academia de ginástica, a praia. Mas diziam: ‘Para o cinema eu não vou'”, continua Sturm. “É uma barreira psicológica. Infelizmente isso aconteceu. Não digo isso porque eu tenho um cinema. Mas com certeza, entre as atividades comerciais, considerando que as pessoas já saem de casa, o cinema é um dos lugares mais seguros que existem. Você fica sentado o tempo inteiro, olhando para frente, sem nenhum desconhecido perto de você. As pessoas não circulam, não levam nada para casa. O ar condicionado faz parte de um sistema central, e portanto, é trocado. Mesmo assim, as pessoas acham perigoso. Elas vão à academia de ginástica, onde todo mundo fica suando, e o ar condicionado quase sempre é de parede. Elas vão à manicure, ao restaurante. Não estou dizendo para elas não irem: sou completamente a favor de que as pessoas tomem cuidado e aproveitem a vida. Mas infelizmente a gente paga pelo medo das pessoas”.

 

O “novo normal”?

 

A composição do mercado

 

Os exibidores trouxeram reflexões interessantes a respeito da configuração do mercado. Adhemar Oliveira traça uma comparação entre as salas de cinema voltadas aos filmes independentes e os multiplexes, no que diz respeito ao impacto da pandemia de Covid-19. Ele assegura que o setor se beneficia com a abertura de novas salas na região, ao invés de ser prejudicado pela concorrência:

“Nosso público pertence principalmente à classe média, e esta foi uma das parcelas que ficou mais receosa, que se cuidou mais. Como eles esperam para voltar a sair, nós fomos mais afetados do que cinemas populares. Sabemos que um produto brasileiro mais elaborado é consumido mais pela classe média do que pelas camadas populares. Quando a gente fala de mercado, não dá para separar, porque o mercado é composto por A, B e C somados, como uma rua de comércio. Os negócios não pioram porque um concorrente se instalou ao lado, pelo contrário. Quando você quer comprar instrumentos musicais em São Paulo, você vai à Teodoro Sampaio, porque existem várias lojas desse mesmo setor, uma ao lado da outra”.

 

Já vivi situações em que os cinemas ao lado do nosso começaram a fechar.
Esse foi o pior momento para a gente.

 

“Um filme não necessariamente ocupa o espaço do outro: o mercado é composto pelos filmes grandes, os médios, os pequenos, para todas as classes. Essa miscelânea constitui o mercado. Já vivi situações em que os cinemas ao lado do nosso começaram a fechar. Esse foi o pior momento para a gente. É ótimo ter tantos cinemas de rua na esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista. Qualquer um deles que feche é ruim para a gente. Quando você pensa em cinema independente em São Paulo, para onde pensa em ir? Para esta região, claro. Além disso, se você por acaso não consegue pegar um filme, tem outro ao lado oferecendo opções compatíveis. O multiplex funciona da mesma maneira, mas dentro de um shopping center. Neste contexto, como tivemos poucos filmes neste período de reabertura, o prejuízo ocorre na construção do mercado como um todo”.

 

 

O novo fim do drive-in

 

Sturm menciona o papel dos cinemas drive-ins, que ganharam um fôlego inesperado no início da pandemia, mas logo se esgotarem uma nova vez. O próprio grupo Belas Artes efetuou projeções em drive-in durante 2020. No entanto, de acordo com o exibidor, “o drive-in não tende a continuar. Já praticamente não existe mais. Não é por falta de interesse do público, mas pela dificuldade de manter um drive-in. Nós fizemos um drive-in no Memorial da América Latina, e outras empresas fizeram em estacionamentos de shopping centers, porque esses lugares estavam ociosos. Mas conforme a vida volta ao normal, os estacionamentos de shopping estão ocupados, e o Memorial também. Os drive-ins acabaram porque não existem áreas centrais tão amplas disponíveis em cidades grandes. Fazer um drive-in no fim da Marginal não vai dar público. O drive-in foi uma opção muito boa num período em que muitas áreas grandes estavam ociosas, mas apenas neste momento”.

 

A ascensão e queda dos drive-ins em 2020

 

O streaming é uma ameaça?

 

Talvez o tópico que tenha ocupado a maior parte da conversa seja o streaming. Seria uma ameaça, um possível aliado? Afinal, Adhemar Oliveira e André Sturm partem de experiências diferentes neste aspecto. O primeiro efetuou pré-estreias virtuais de seus filmes em 2020, mas não mantém um serviço próprio de exibição online. Já o segundo investiu num serviço “à la carte”, com filmes exclusivos na plataforma virtual mediante assinatura.

“Eu acho que o streaming é uma atividade complementar”, explica Sturm. “Quem assiste ao streaming não vai sair de casa, e quem vai ao cinema está disposto a sair de casa. Ninguém deixa de ir ao cinema para ir ao streaming: a maior parte das pessoas que vai ao cinema busca a experiência específica que o streaming não traz. Mas algumas pessoas não saem de casa mais, seja pela pandemia ou não. A pessoa pede comida em casa, vê TV a cabo, fica com a família. Para estas pessoas, o streaming é o conteúdo perfeito para consumir. Já outras pessoas buscam a experiência do teatro, do cinema, do show. Então as duas atividades são complementares. O streaming está fazendo as pessoas assistirem a mais filmes, e isso também as encoraja a irem ao cinema”.

 

A maior parte das pessoas que vai ao cinema busca
a experiência específica que o streaming não traz.

 

“O streaming é uma tendência tecnológica que parece ter vindo para ficar”, concorda Oliveira. “Ele não é uma tecnologia que anda sozinha, e precisa ser controlado por humanos. Com a diversidade de produção no mundo, existe a possibilidade de coexistência, assim como o cinema coexistiu com todas as formas que precederam o streaming. Existem equações econômicas que começam a se modificar. Elas precisam se modificar porque nesta equação, não se pode verticalizar uma empresa: produzir, distribuir e exibir, por exemplo. Mas o streaming está verticalizado. A partir do momento em que a sala de cinema participa em todas as outras esferas, isso deixa de ser um problema, e passa a ser a solução. Se você pode vender o seu ingresso no cinema e ainda atender ao cliente em casa, você abre uma janela para expandir o trabalho”.

“É claro que é preciso reformatar o operador, mudar o pensamento, alterar as leis econômicas. Mas a situação parece se encaminhar para isso. Não vejo o fim do cinema, porque ele não é apenas o espaço para ver um filme, mas também um espaço de convivência. O streaming vai apenas aprofundar o que o Hobsbawn já dizia sobre o individualismo exacerbado do final do século XX, até que isso possa explodir – ou então criamos um novo tipo de ser humano! Então tudo acaba. É muito claro: temos caminhos que não são necessariamente tecnológicos, que são decisões humanas. Você pode comer em casa, mas também pode ir ao restaurante. Você pode fazer muitas coisas sozinho, e compartilhar outras com um grupo de pessoas, porque essa experiência traz algo a mais. Você pode escutar música em casa, ou pode ir ao show. O componente humano dessas experiências fora de casa persiste. São fatores comportamentais. Se muitas pessoas fizerem tudo pelo computador, nós criaremos ilhas dentro da sociedade. Eu penso nos dias de chuva, por exemplo. No primeiro dia que chove, o cinema fica vazio. No segundo dia chovendo, começa a ter gente. No terceiro dia, a sala de cinema lota. É uma visão de comportamento para além da tecnologia. Eu não tenho nada contra a tecnologia. Estamos aprendendo”, conclui o diretor do Espaço Itaú de Cinemas.

 

Quando a sala de cinema vai ao streaming

 

Lançamentos simultâneos: cinema e streaming

 

O segundo semestre de 2020 despertou pânico no mercado exibidor quando as principais majors decidiram driblar a sala de cinema, ou retirar destes espaços a prioridade da exibição. A Disney lançou Mulan (2020) e Soul (2020) diretamente em sua plataforma própria. A Warner Bros. anunciou que seus principais lançamentos aconteceriam ao mesmo tempo nas salas de cinema e num serviço próprio de streaming, o que se iniciou com Mulher-Maravilha 1984 (2020). Os exibidores reagiram: sem os grandes filmes para alavancarem a retomada econômica, as salas não estariam condenadas ao fechamento?

“A Warner, quando anunciou isso, garantiu que era uma medida provisória para doze filmes em 2021, porque a pandemia não acabou, e eles precisam rentabilizar os filmes. Não é algo definitivo, no caso deles”, calcula Sturm. “No nosso caso, pelo perfil dos filmes que a gente lança na Pandora, nós já tínhamos o plano de fazer um lançamento assim para filmes muito especiais. O Brasil tem 5.500 municípios, mas apenas 500 deles têm cinema. Um filme de festival vai ser exibido em dez, quinze cidades. Todo o esforço de comunicação para lançar o filme pode ser melhor aproveitado se ele também estiver no streaming. A gente não faria isso com a Palma de Ouro de Cannes, por exemplo, mas este teria sido o caso de Apocalypse Now: Final Cut. A gente teria lançado em seis cidades do Brasil nas salas do cinema, com o lançamento simultâneo no streaming. Acabamos fazendo o lançamento simultâneo em streaming e drive-in. Em alguns casos, faz sentido aproveitar o esforço de comunicação e dar acesso do filme para mais pessoas ao mesmo tempo. Mas para filmes grandes, com forte potencial de público, não faria sentido: neste caso, tem que explorar o cinema primeiro, e só depois o streaming”.

 

As salas de cinema já enfrentaram os DVDs, enfrentaram a TV a cabo
e muitos outros formatos e mudanças comportamentais.

 

Oliveira estima que os cinemas sobreviverão, porque as novas tecnologias são vistas como ameaças inicialmente, até encontrarem seu nicho de mercado e se ajustarem à convivência com outras possibilidades de exibição. “O custo de uma sala de cinema, hoje, é determinado para um padrão de aproveitamento. Ora, quando você interfere nesse padrão de aproveitamento, você mexe numa estrutura econômica. A simultaneidade do filme no cinema e na casa das pessoas pode levar a uma baixa de rendimento no cinema, em que o dono da sala não participa do outro rendimento, e isso abala a estrutura. Por isso, os exibidores defendem que exista a primazia das salas de cinema, para se manter isso. A construção de um star system, de um modelo de economia, se construiu ao longo dos tempos. Essa estrutura enfrentou os DVDs, enfrentou a TV a cabo e muitos outros formatos e mudanças comportamentais. O streaming é mais uma modificação, ainda mais rápida. O processo é sempre aliado à rapidez: antes, ir à locadora para alugar um DVD trazia uma concorrência ao cinema, mas ainda era preciso sair de casa, pegar o DVD, depois devolver”.

“Hoje, nem é preciso sair de casa”, ele continua. “Vejo uma sociedade sedentária, exigindo uma rapidez desumana. Você nasce em nove meses, existe um tempo específico para isso. Se pudessem, as pessoas fariam os bebês nascerem em menos tempo! Existe uma velocidade humana, e sou crítico ao olhar para a tecnologia. Hoje, o celular se tornou a maior babá de crianças que existe. Isso cria uma dependência que pode virar banca de psicanálise. É preciso colocar um controle humano nisso, embora seja complicado. Consegui colocar algum controle deste tipo na criação dos meus filhos, mas os netos não estão indo pelo mesmo caminho. O cinema exige sair de casa, se programar, encontrar pessoas que você nunca viu e conviver com elas. A pandemia é um grande inimigo nesse sentido, porque a nossa função, enquanto exibidores, é aglomerar. Queremos fazer uma grande festa para as pessoas curtirem juntas, sejam os exibidores, produtores de shows, de peças de teatro. A ideia é criar o prazer de se usufruir da arte juntos, com uma qualidade específica de tamanho de tela, e de som. Eu não gosto de ver filmes em telas pequenas, por exemplo. Só faço isso por obrigação e rapidez”.

 

O cinema mudou

 

Mudou a sociedade, mudarão os filmes

 

“Antes, a gente via no cinema uma capacidade de concisão, de elipse, precisando contar a história em duas horas. Quando você pode contar a história numa série de oito horas, você acompanha o personagem andar a cavalo em tempo real, por exemplo. Para quem gosta muito da forma narrativa do cinema, pode existir um estranhamento. Mas nossa percepção muda, o espectador pode mudar. Talvez até o cinema volte a fazer filmes maiores”. Adhemar Oliveira traz uma questão essencial, e pouco discutida nesta retomada tão política e econômica: as transformações do cinema e das séries para se acomodarem às novas perspectivas digitais. O exibidor acredita que a configuração das plataformas de streaming, da Internet e as mudanças de comportamento social farão com que o cinema mude sua linguagem, em adequação a esta nova sociedade:

“O streaming está colocado como tendência. Faz quatro anos que eu estudo esta questão: viajei para outros países para olhar isso, ver a tecnologia e a montagem de custos. Isso depende de como você vê o futuro. O cinema nos anos 1980 tinha um domínio dos grandes distribuidores e dos grandes estúdios. O sistema era carteirizado: o estúdio A trabalhava com o exibidor A, o B com o B, e quem não estava nestes grupos, chupava o dedo. Nós nos criamos nesse momento, tendo que nos virar. O cartel foi benéfico para nós no sentido em que nos forçou a correr e criar uma distribuidora. O que está acontecendo hoje? A partir de uma empresa que saiu na frente, os estúdios começaram a lançar seus aparatos. Existem caminhos para fazer coisas pontuais. O estudo que eu fiz apontava que é possível uma sala de cinema atender ao espectador físico e ao espectador virtual. Existem uma série de problemas e trabalhos relacionados. O operador de cinema hoje, o exibidor, é uma figura que disponibiliza o filme. No cinema comercial, ele nem se importa muito em trabalhar o produto, porque é o distribuidor que trabalha isso. No caso do cinema independente, você tem que conhecer o cinema, fazer o marketing, porque ele não vem pronto, e você acaba aprendendo muito”.

 

[Com o streaming], se eu quiser fazer um filme de quinze horas, eu posso.
Modificamos a essência do filme.

 

“Cada um testa seus caminhos: o Belas Artes abriu seu serviço de streaming, porque já tem experiência na distribuição. Agora vamos começar a ver onde isso vai, e onde chega. Estamos no começo de um processo. Só mais tarde vamos descobrir se a gente conseguiu manter a convivência das salas de cinema com o streaming, se o streaming não matou o formato do filme. Como não existe a questão de tempo, nem de espaço, existe a liberdade para fazer o que eu quiser: se quiser fazer um filme de quinze horas, eu posso. Modificamos a essência do filme. Ao longo do tempo, diversas técnicas foram desenvolvidas para o espectador compreender passagens de tempo, para desenvolver uma imersão. Podemos ter um regresso nesse sentido, ou quem sabe estamos vendo a origem de algo novo. Não posso criticar o que ainda está nascendo. Vamos ver até onde esse processo vai, a partir do momento em que esse estudo se transforma em equações econômicas, políticas e comportamentais. Nos últimos cinco, seis anos, o pensamento que mais me fascinou foi o dos historiadores, que conseguem pegar determinadas perspectivas e combinar elementos, desde a economia até a filosofia e psicologia da humanidade. Não adianta ter algumas invenções humanas, se a filosofia não vai junto”.

“Uma amiga me dizia que o melhor período foi os anos 1960, porque tinha a filosofia do amor livre, a pílula anticoncepcional e o antibiótico. Isso fez a felicidade da humanidade – foi um casamento de revolução tecnológica e revolução comportamental. Mas o que acontece agora? Quando você não pensa apenas em ganhar dinheiro, e se interessa em estudar os novos caminhos, a situação fica complicada. Estamos vivendo mudanças comportamentais que produzem receio. Andar dentro do Museu do Louvre ou fazer uma imersão em 3D numa tecnologia virtual do Museu do Louvre é a mesma coisa? Para quem já foi uma vez, vai dizer que não. Para quem nunca foi, talvez seja uma ótima oportunidade. Como a medicina se adequa à tecnologia, e à telemedicina? E a educação, face à tele-educação? A mudança está colocada para todos os nichos, não é apenas o cinema lidando com o streaming. Existe um movimento que me parece irreversível, e vai muito além da área. Não podemos jogar fora a água dos banhos passados, senão descartamos o bebê junto. Temos que ler muito, estudar muito”, conclui Oliveira.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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