Chamada de Pulsante, esta mostra do Curta Vazantes 2021 tem filmes caracterizados por essenciais traços em comum. A fim de melhor transitar pelas semelhanças e diálogos, vamos elencar quatro deles, os transformando em pilares: o afeto como antídoto contra a violência; a necessidade de ir embora; a embalagem da ficção científica; e a poesia. Em Inabitável (2020), de Matheus Farias e Enock Carvalho, um dos nossos curtas-metragens recentes mais celebrados (e com bastante justiça), a premissa é a procura preocupada/desesperada de uma mãe pela filha desaparecida. Aos poucos, nota-se que se está falando de uma jovem transexual que não voltou para casa e tampouco se abrigou com as amigas, assim contrariando seus costumes. O que há de mais comovente nesse pequeno grande filme (e lá se vai um chavão, mas aqui empregado com gosto) é o profundo carinho da mulher interpretada com maestria por Luciana Souza. O afeto transbordante nessa jornada marcada por preocupações é um emplastro poderoso contra o entorno transfóbico. O amor é central em outros curtas-metragens desse recorte consistente.

Cena de “Inabitável”

 

Em Sobre Nossas Cabeças (2020), de Susan Kalik e Thiago Gomes, um rapaz convida o amigo para fazer uma vigília em busca de indícios extraterrestres no céu. A conversa deles vai trazendo à tona várias questões de ordens que ainda serão discutidas neste texto. Mas, dentro da ideia do carinho como remédio, prevalece a decisão arbitrária de um permitir ao outro a alternativa à vida repleta de perigos e violências. Já em Manaus Hot City (2020), de Rafael Ramos, também são os diálogos que explicitam o quão é importante ter apoio de alguém para conviver com repressões, dúvidas e até mesmo uma doença cuja simples menção causa alarme. No lindo espanhol Antes De La Erupción (2021), de Roberto Pérez Toledo, a narração em off esclarece a extensão de uma amizade que revisita o passado e projeta o que será do futuro durante a viagem aos pés de um vulcão. Isso, especialmente emoldurado pela transição do amigo na iminência de assumir uma identidade de gênero feminina. Que lindo ouvir o rapaz falando intimamente, sem preconceitos, mas também é bonito presenciar os gestos de ternura entre (quase) todos. Por fim, em De Vez em Quando Eu Ardo (2021), de Carlos Segundo, o contraveneno passa pela diversificação dos corpos.

Quanto à necessidade de ir embora, em parte dos filmes da mostra Pulsante ela vira um movimento ambíguo. Ainda que seja promissor recomeçar a vida num lugar novo, também essa partida como algo inevitável apresenta seu viés melancólico. Em Inabitável e Sobre Nossas Cabeças, curiosamente dois filmes que terminam com as luzes extraterrenas prestes a abduzir os que sofrem discriminações de toda sorte, a Terra é vista, talvez, como hostil demais para homossexuais, transexuais e/ou pessoas negras. Como diria Elis Regina na famosa canção: “alô, alô marciano, aqui quem fala é da Terra, pra variar estamos em guerra”. E a “guerra” é cotidiana aos corpos brutalizados pela marginalização que mata. Em Manaus Hot City, a trans que acolhe de modo delicado o amigo gay soropositivo está de malas prontas para São Paulo, deixando para trás justamente a Manaus dos agressores antes deflagrada. Em De Vez em quando eu Ardo essa partida é simbólica, vide a religiosa que participa da dinâmica fotográfica em que momentaneamente “deixa” seu corpo corriqueiro de freira, se despindo de suas amarras.

Cenas de “Sobre Nossas Cabeças” e “Manaus Hot City”

 

A respeito da utilização da ficção científica, ela é direta em Inabitável e Sobre Nossas Cabeças, com menções semelhantes ao extraterrestre. Matheus Farias e Enock Carvalho são mais felizes, pois integram organicamente o sci-fi no mistério da trama realista. O artefato brilhante incita a constância do extraordinário, dado confirmado pelo retorno da desaparecida, resplandecida pela luz oriunda de outra noção de existir. A dupla Susan Kalik e Thiago Gomes deixa essa filiação literal para a tomada final, logo confirmando o discurso aparentemente desvairado de um personagem. Aliás, no cinema contemporâneo está se tornando frequente a utilização da ficção científica como potente embalagem de histórias que falam de transições, para simbolizar a luta diária contra inimigos palpáveis, e, no caso dos dois curtas antes citados, da possibilidade de encontrar mundos menos adversos aos que divergem de padrões. Nesses curtas-metragens, ela serve à discussão racial, sobre identidade de gênero e liberdade individual. Esse molde cinematográfico amplifica metaforicamente os debates sobre corpos, regiões e convenções inabitáveis.

Por fim, mas não menos importante (outro lugar-comum conscientemente aqui utilizado), a dimensão poética desses percursos atravessados por afetos transformadores e a urgência para encontrar um lugar de viver a diversidade. Tanto em Manaus Hot City quanto em Antes De La Erupción, a narração em off confere acesso privilegiado à intimidade de determinados personagens, àquilo que eles não verbalizam completamente. Outra coisa que interliga os filmes é a coleção de tomadas plasticamente carregadas de simbologias. No brasileiro, a luz escaldante de Manaus adquire uma agregadora margem lírica. No espanhol, os planos das areias vulcânicas, das ondas do mar e das formações geográficas evocam uma ligação profunda entre humanos e natureza. Não à toa, o jovem em processo de transição é literalmente comparado ao vulcão, já que a erupção de seu desejo pode ser vista como violenta, mas transformadora beneficamente às paisagens interna e externa. Em De Vez em Quando eu Ardo o encanto está na dança dos corpos e na forma como a técnica fotográfica captura a fusão momentânea, dando-lhe outro tipo de beleza.

Cenas de “Antes De La Erupción” e “De Vez em quando Eu Ardo”

 

A VII Mostra Curta Vazantes 2021 segue permitindo ao expectador uma bonita experiência continuada ao efetuar essa seleção em blocos. Propicia, entre outras coisas, o entendimento quanto a certas inquietações e procedimentos cinematográficos recorrentes para falar de pessoas obrigadas a se deparar diariamente com as violências do preconceito. Esses excluídos não possuem o selo de “aprovação” dos que carregam corpos, religiosidades e comportamentos padronizados. O recorte da mostra Pulsante é um riquíssimo, exatamente por que consolida a ideia do afeto como antídoto, enquanto a poesia e a vontade de partir servem à autopreservação da integridade humana.

 

Filmes assistidos online no VII Mostra Curta Vazantes, em junho de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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