A partida de Sidney Poitier, um dos maiores atores norte-americanos, e símbolo da resistência negra diante do racismo da indústria, nos leva a repensar a trajetória deste grande homem. Harry Belafonte, Halle Berry, Tyler Perry, Questlove e Denzel Washington foram alguns dos artistas que prestaram homenagens comoventes ao colega de profissão. “Ele abriu para nós portas que estavam fechadas há muito tempo”, comenta este último. Na ocasião da morte do ator, aos 94 anos de idade, o Papo de Cinema relembra esta trajetória de exceção.
Poitier nasceu em Miami, Flórida, “por acidente”. Seus pais, fazendeiros que viviam nas Bahamas, viajavam aos Estados Unidos com frequência para vender tomates. Num destes percursos, nasceu três meses antes da data prevista. Apesar da saúde frágil, resistiu e conseguiu imediatamente a nacionalidade norte-americana por ter nascido no território. Mesmo assim, cresceu em Cat Island, nas Bahamas, e se mudou ainda criança para Nassau. O contato inicial com o cinema ocorreu nesta última cidade.
A primeira experiência nos Estados Unidos foi frustrante. Sofrendo com o forte racismo da era Jim Crow, abandonou as cidades sulistas e tentou a carreira de ator em Nova Iorque aos 16 anos. de idade Enquanto esperava conquistar uma oportunidade na área, trabalhou como lavador de pratos em restaurantes locais. Entretanto, o forte sotaque bahamense e a dificuldade para cantar dificultaram a ascensão nas artes dramáticas. No primeiro teste para o American Negro Theater, foi rejeitado, e logo decidiu tentar a vida no exército. Embora tenha conseguido um cargo num hospital de veteranos, mentindo sobre a idade, manifestou profundo incômodo com o tratamento recebido pelos pacientes mentais, e conseguiu ser dispensado da função.

O jovem treinou muito para ser admitido, enfim, no American Negro Theater, na segunda tentativa. Em contrapartida, teve um acolhimento frio do público nas primeiras peças de teatro. Após muito treinamento vocal e dramático, modelando a voz e o corpo aos diferentes papéis, conseguiu algumas participações na Broadway. Neste processo, o engajamento político jamais esteve dissociado da carreira: em 1947, Poitier fundou o Committee for the Negro in the Arts, visando uma análise crítica e progressista das relações raciais nas artes. Vale lembrar que havia pouquíssimos atores negros em grandes papéis de Hollywood na época. Por isso, ele enfrentou forte resistência para conseguir personagens de destaque.
A experiência inaugural no cinema veio com O Ódio É Cego (1950), de Joseph L. Mankiewicz. A trama sobre um médico negro obrigado a atender dois pacientes racistas ditou uma tendência do astro em buscar obras relevantes social e politicamente. O filme foi indicado ao Oscar de melhor roteiro, o que contribuiu a popularizar o nome de Poitier. Em seguida, repetiu a dose nos dramas Os Deserdados (1951), de Zoltan Korda, sobre um pastor negro enfrentando o preconceito na África do Sul, e Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, a respeito das relações sociais e raciais no interior de uma escola.
A primeira atuação reconhecida pelas premiações veio em 1958, com Acorrentados, de Stanley Kramer. Brancos e negros conviviam de maneira conflituosa nas telas: o personagem de Poitier se encontrava literalmente acorrentado ao personagem de Tony Curtis, com quem nutria um relacionamento conflituoso. Ambos foram indicados ao Oscar, e no caso de Poitier, esta representou a primeira indicação de um artista negro ao Oscar de melhor ator. Além disso, ele venceu o British Academy Film Awards pelo papel. Em paralelo, seguiu atuando nos palcos, inclusive no espetáculo A Raising in the Sun, adaptado ao cinema como O Sol Tornará a Brilhar (1961).

O Ódio É Cego

Nesta primeira fase, Poitier ficou restrito a projetos que debatiam explicitamente as relações sociais nos Estados Unidos — um tema que certamente interessava muito ao ator, mas tampouco permitia a apresentação de seus talentos em registros para além do drama. Seguiram-se Paris Vive à Noite (1961), igualmente centrado no racismo, e interpretado por um grande elenco (Paul Newman, Joanne Woodward). A carreira do ator se transformaria por completo em 1963, quando se tornou o primeiro homem negro a vencer o Oscar de melhor ator por Uma Voz nas Sombras (1963), de Ralph Nelson. Este feito continuou sendo uma exceção absoluta na indústria: somente em 2001 o segundo prêmio de melhor ator seria entregue a um homem negro — no caso, Denzel Washington por Dia de Treinamento.
Com o sucesso, decidiu expandir sua área de atuação, investindo na carreira de músico e buscando grandes produções como a trama de guerra O Caso Bedford (1965) e o épico bíblico A Maior História de Todos os Tempos (1965). Curiosamente, no ano de 1967 ele atuou em três das produções mais marcantes e premiadas de todo o seu percurso: Ao Mestre, com Carinho, Adivinhe quem Vem para Jantar (vencedor de 2 Oscars) e No Calor da Noite (vencedor de 5 Oscars). Adivinhe quem Vem para Jantar, em particular, se tornou um marco da representação positiva dos relacionamentos interraciais, vistos até então com estranhamento e exotismo pela indústria. No final deste ano frutífero, Poitier se tornou o ator negro de maior bilheteria em Hollywood.

Acorrentados

Tamanho reconhecimento foi acompanhado de maior cobrança em relação à responsabilidade do ator na indústria. Ele foi cobrado por atuar em papéis semelhantes, ao invés de ocupar produções de outros gêneros. Assim, Poitier passou a dirigir seus primeiros longas-metragens, focados em comédias. Nestes casos, contratou elencos quase inteiramente negros, ainda que a questão racial não fosse um motor de conflito. Dezembro Ardente (1973), Aconteceu num Sábado (1974), Aconteceu Outra Vez (1975) e Os Espertalhões (1977) receberam uma resposta morna dos críticos, mas serviram a comprovar o talento de Harry Belafonte, Richard Pryor e Bill Cosby. Sua comédia de maior sucesso enquanto diretor viria em 1980, com Loucos de Dar Nó, estrelada por Gene Wilder e Richard Pryor.
Após esta fase de intensa produção, Poitier reduziu o ritmo como ator e diretor. Pai de seis filhos, consagrou-se à vida familiar e aos projetos como músico, embora tenha atuado no bem-sucedido filme de ação Atirando para Matar (1988), de Roger Spottiswoode. Chegando aos 70 anos, preferiu investir em projetos menores, a exemplo de telefilmes como Ao Mestre, Com Carinho 2 (1996) e Mandela e De Klerk (1997), no qual interpretou o líder Nelson Mandela.
Em termos de premiações, Poitier nunca foi indicado a outro Oscar depois da vitória por Uma Voz nas Sombras (1964). Em contrapartida, recebeu o prêmio honorário da Academia pelo conjunto da carreira em 2002. Ele também recebeu um BAFTA, dois Ursos de Prata de melhor ator no Festival de Berlim, três Globos de Ouro (incluindo um troféu honorário), um Grammy e uma homenagem pela carreira no SAG Awards. Em 1995, integrou o comitê dirigente da Walt Disney Productions, e em 1997, tornou-se embaixador das Bahamas no Japão.
Além disso, escreveu três autobiografias: This Life (1980), The Measure of a Man: A Spiritual Autobiography (2000) e Life Beyond Measure: Letters to My Great-Granddaughter (2008).

Filme imprescindível: Uma Voz nas Sombras (1963). Talvez não seja o melhor filme do ator, mas é um projeto bastante representativo das escolhas artísticas e políticas de Poitier. Além disso, a vitória no Oscar foi fundamental não apenas ao artista, mas a todos os atores e atrizes negros, escancarando o racismo estrutural que continuaria vigente na indústria.
Filme esquecível: O Chacal (1997). O suspense de ação com Bruce Willis e Richard Gere foi desprezado pelos críticos e pelos espectadores, além de exigir pouco das habilidades do talentoso intérprete.
Primeiro filme: O Ódio É Cego (1950) costuma ser creditado como primeiro longa-metragem do ator, no entanto, tecnicamente, ele iniciou sua carreira como figurante, sem falas e não-creditado, na comédia musical Sepia Cinderella (1947), que passou despercebida pelos cinemas.
Último filme: Construindo um Sonho (2001). Poitier encerrou o percurso como ator estrelando o telefilme de Gregg Champion a respeito de um viúvo solitário que se torna o mentor de um garotinho de 13 anos de idade.
Guilty pleasure: O romance musical Porgy & Bess (1959). Poitier confessou que não pretendia de fato atuar nesta produção, mas aceitou na intenção de agradar o poderoso produtor, que poderia escalá-lo em longas-metragens melhores em seguida. Para o público, o filme representou a oportunidade de vê-lo num papel mais leve.
Oscar: Uma Voz nas Sombras (1963), como melhor ator. Também foi indicado por Acorrentados (1958).
Frase inesquecível: “Embora a História tenha devidamente registrado a minha presença nos filmes, minha contribuição se resumiu a estar no lugar certo, na hora certa. É através destes perfeitos acidentes que o destino constrói seus propósitos maiores”, escreveu na autobiografia, a respeito de seu legado.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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