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Dentre todos os cineastas da geração da Nova Hollywood, talvez nenhum outro tenha encarnado de modo mais intenso o espírito contestador e transgressor, que refletia o sentimento de desilusão da sociedade norte-americana dos anos de 1970, do que Michael Cimino. Da consagração absoluta com O Franco-Atirador (1978) à impiedosa rejeição após o desastre de O Portal do Paraíso (1980), a carreira de Cimino é marcada por extremos que ajudam a explicar tanto o seu melancólico exílio do mundo cinematográfico quanto o culto atual e crescente à sua obra. Nascido em 03 de fevereiro de 1939 – data por vezes contestada, sendo mais uma polêmica em uma vida repleta delas – em Nova York, Cimino buscou desenvolver sua habilidade criativa desde a juventude, estudando pintura e arquitetura na universidade de Yale.

Ainda nos tempos universitários, se envolveu com as artes dramáticas e, após terminar seus estudos, começou a trabalhar na área publicitária, tornando-se um dos mais bem-sucedidos diretores de comerciais para a televisão da década de 1960. Em 1971 mudou-se para Los Angeles com o intuito de iniciar a carreira de roteirista e, em pouco tempo, emplacou seus primeiros projetos, como a ficção científica cult Corrida Silenciosa (1972) e o policial Magnum 44 (1973), segundo longa da saga do Detetive Dirty Harry, interpretado por Clint Eastwood. E foi justamente o astro de Três Homens em Conflito (1966) que proporcionou a Cimino sua grande oportunidade, chamando-o para escrever e dirigir o thriller com toques cômicos O Último Golpe (1974).

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No longa em que Eastwood interpreta um ladrão de bancos ao lado de um jovem Jeff Bridges, formando a dupla do título original (Thunderbolt & Lightfoot), já é possível notar diversas das características que marcariam o cinema de Michael Cimino: sua ligação íntima com a natureza, o apreço pelas vastas paisagens americanas, as fortes relações de amizade e o retrato quase sempre desesperançoso da sociedade. Um dos herdeiros mais diretos da tradição fordiana, trabalhava os ícones da cultura de seu país – como os cowboys – desmistificando-os através de sua visão pouco condescendente. Com o sucesso de O Último Golpe veio então o filme responsável pela primeira grande virada em sua carreira: O Franco-Atirador.

O drama sobre um grupo de amigos que é enviado para a Guerra do Vietnã – estrelado por Robert De Niro, Christopher Walken, John Cazale e Meryl Streep – foi aclamado por público e crítica, rendendo a Cimino o Oscar de Melhor Diretor, além de levar outras quatro estatuetas, incluindo a de Melhor Filme. Como em toda a sua trajetória, mesmo no sucesso seu trabalho foi incompreendido por muitos, que taxaram O Franco-Atirador de patriota e até de fascista, não enxergando que o cineasta criticava justamente a falência deste sentimento nacionalista, que obrigava jovens a lutarem e morrerem em uma guerra que não compreendiam. É sobre os efeitos dos traumas desta luta sem sentido, sobre a perda da inocência e o esfacelamento da humanidade que ele trata nesta obra devastadora, repleta de sequências marcantes, como os tensos “jogos” de roleta-russa ou o desolador desfecho em que todos entoam God Bless America.

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A consagração permitiu a Cimino ter carta branca para seu trabalho seguinte, que viria a transformar sua vida de maneira ainda mais profunda: o ambicioso O Portal do Paraíso, um épico sobre o Massacre de Johnson County, episódio obscuro da história americana onde um grupo de fazendeiros do Wyoming assassinou centenas de imigrantes eslavos, acusando-os de roubo de gado e de terras. O perfeccionismo e sua tendência à grandiosidade fizeram com que a produção fosse turbulenta desde o início, com o orçamento sendo extrapolado e filmagens atrasando a cada dia. Ao final, as mais de três horas e meia do corte original do cineasta foram remontadas pelos produtores e o longa dilacerado lançado nos cinemas em circuito restrito. O fracasso comercial foi retumbante, levando a United Artists à falência e praticamente destruindo a reputação de Michael Cimino.

Novamente a incompreensão atravessava o caminho do diretor, desta vez de forma implacável. O fato de tocar em um tema evidentemente desagradável ao público americano contribuiu para que houvesse uma rejeição pré-estabelecida em torno do filme, algo que acabou se sobrepondo à maestria e à audácia na concepção de uma obra monumental. Dentro destas circunstâncias, o cineasta acabou servindo de bode expiatório para que os estúdios voltassem a tomar as rédeas da indústria cinematográfica, acabando com boa parte da liberdade do cinema autoral conquistada pelos integrantes da Nova Hollywood. Estigmatizado, não conseguia mais obter financiamento para os projetos que gostaria de realizar, se vendo obrigado a aceitar o que mais se aproximasse de seus desejos artísticos dentre aquilo que lhe era oferecido. E assim, foram necessários cinco anos até que dirigisse um novo longa.

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Ainda que enfrentando todo o tipo de adversidade, Cimino continuou a trilhar um caminho próprio, transformando filmes de encomenda em obras autorais que constituem a porção de sua filmografia que merece ser revista e apreciada, para não dizer descoberta, com maior urgência. Fazem parte desta lista o excepcional O Ano do Dragão (1985), estrelado por Mickey Rourke, um thriller policial que é influência clara para alguns dos maiores nomes do cinema contemporâneo, como Michael Mann, James Gray e Quentin Tarantino. O colossal drama de máfia O Siciliano (1987), provavelmente o seu filme mais injustiçado, que narra a trajetória do misto de herói e bandido italiano Salvatore Giuliano – interpretado por Christopher Lambert – para tratar novamente da construção da imagem do mito e da petrificação dos ícones. E o suspense Horas de Desespero (1990) – novamente com Mickey Rourke, além de Anthony Hopkins – remake do longa homônimo protagonizado por Humphrey Bogart em 1955.

Por fim, realizou o belíssimo Na Trilha do Sol (1996), com Woody Harrelson, seu derradeiro trabalho para o cinema, que integrou a mostra competitiva de Cannes. Mas mesmo a exibição no prestigiado festival não foi suficiente para que o filme renovasse de fato a fé do mercado no talento do cineasta, e assim Cimino entrou em um período de reclusão cinematográfica, se dedicando à pintura e à literatura, que só seria quebrado com a realização do curta No Translation Needed, parte da antologia Cada Um Com Seu Cinema (2007). Nestas duas décadas afastado das telas e também da mídia, com raras entrevistas ou aparições, passou por um processo de mitificação, se tornando uma figura envolta em mistérios e boatos quase folclóricos. Ao mesmo tempo, sua obra passou a ser cada vez mais estudada e reverenciada.

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As homenagens nos últimos anos tornaram-se constantes, como a do Festival de Veneza, em 2012, que exibiu a cópia restaurada de O Portal do Paraíso, evidenciando a falta que alguém com a coragem de Cimino faz à indústria que se encarregou de calar sua voz. Um verdadeiro artista que trouxe ao cinema a sensibilidade e o profundo conhecimento técnico inerentes à sua formação. Como um pintor apaixonado, não desperdiçava nenhum milímetro de tela, preenchendo-a com imagens que transbordam beleza e significado. Como um arquiteto esmerado, demonstrava domínio pleno do espaço, utilizando-o em comunhão com a manipulação minuciosa do tempo para construir momentos de imersão completa para o espectador: Nos finais poéticos de jornadas transformadoras (O Último Golpe e Na Trilha do Sol), no último suspiro de felicidade entre amigos ao som de Can’t Take My Eyes Off You (O Franco-Atirador), na celebração da longa dança no rinque de patinação (O Portal do Paraíso), no desespero do ataque à casa da esposa de Stanley White (O Ano do Dragão), na incredulidade de Salvatore Giuliano diante do massacre da passeata comunista (O Siciliano) ou no lirismo da fuga e da integração com a natureza do bandido Albert (Horas de Desespero).

Entre os devaneios sobre projetos não realizados – como um épico sobre o descobrimento do Brasil ou a tão sonhada adaptação do livro A Condição Humana, de André Malraux – e sobre como seria o resultado se tivesse comandado filmes que rejeitou– como Footloose – Ritmo louco (1984) – fica uma obra pequena em quantidade, mas enorme em relevância e qualidade. Obra de um renegado, falecido em 2 de julho de 2016, um dos últimos representantes de uma estirpe de cineastas singulares por vezes classificados de gênios malditos.

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Filmes imprescindíveis: O Franco-Atirador (1978) e O Portal do Paraíso (1980)

Filmes mais subestimados: O Siciliano (1987) e Na Trilha do Sol (1996)

Premiações: Vencedor do Oscar (Melhor Filme e Melhor Diretor), além da indicação a Melhor Roteiro Original, vencedor do Globo de Ouro (Melhor Diretor) e indicado ao BAFTA (Melhor Direção), por O Franco-Atirador (1978). Concorreu duas vezes à Palma de Ouro no Festival de Cannes, com O Portal do Paraíso (1980) e Na Trilha do Sol (1996). Indicado ao César de Melhor Filme Estrangeiro, por O Ano do Dragão (1985). Prêmio pelo conjunto da obra no Festival de Veneza de 2012.

Frases inesquecíveis: “Gosto dos cavaleiros do Kurosawa, das montanhas e vales do John Ford e de um par para dançar à Fred Astaire. Gosto de filmes feitos por poetas.”

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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