É praticamente impossível fazer uma análise sobre cinema brasileiro sem passar pela seara dos curtas-metragens. Formato originalmente estranho à maioria dos espectadores por conta da pouca penetração comercial de seus exemplares, o curta é um espaço de experimentação que frequentemente antecipa tendências temáticas e estilísticas que adiante serão reconhecidas em produções de longa-metragem. No entanto, isso não quer dizer que o âmbito do curta é puramente laboratorial, que serve tão e somente para ideias fermentarem e fórmulas serem postas à prova visando nutrir os longas de subsídios e elementos. O curta é potente por si próprio, tem uma cena pujante que deve ser investigada e muito mais valorizada do que vem sendo nos últimos anos. A Mostra Brasil do 16º Curta Taquary ofereceu um interessante recorte de 13 filmes, alguns deles exibidos nos principais festivais de cinema do mundo, outros gratas surpresas que tem nas telonas de Taquaritinga do Norte o seu palco mais nobre. Vamos conferir o que foi possível extrair dessa experiência de assistir a exemplares tão diferentes em estilo e abordagem, mas que acabam revelando um pouco sobre que país é esse em que vivemos agora.
O BRASIL FEMININO E INDÍGENA
O feminino e as causas indígenas são os principais temas da Mostra Brasil do 16º Curta Taquary. Céu, curta-metragem paraibano dirigido por Valtyennya Pires, conta a história de uma saudade. Pessoas que moram no Quilombo da Serra do Talhado falam sobre a ausência de Maria do Céu, líder comunitária citada como referência à comunidade, liderança que brigava por justiça social e que deixou um buraco no local, mas também sementes germinando à continuidade de seu trabalho. Do ponto de vista cinematográfico, o mais interessante é que a cineasta explora o aspecto cultural do quilombo, sobretudo a atividade das louceiras negras da Serra do Talhado, enquanto mantém suspense a respeito do que motiva a ausência de Maria do Céu. O desfecho traz à tona o feminicídio, assim acrescentando um assunto nessa conexão inteligente entre pessoal e social. Já no gaúcho Um Tempo Para Mim, de Paola Mallmann, a protagonista é uma menina Guarani prestes a ter a primeira menstruação. Em meio à expectativa ao acontecimento importante, a cineasta conta um pouco da tradição de um povo que acredita no matrimônio das mulheres com a lua e na sua conexão com o satélite natural no que diz respeito à regência por ciclos. O filme tem mise-en-scène endurecida que não favorece a exploração do aspecto cru das atuações de não atores. De toda forma, é um estudo interessante dessa feminilidade Guarani.
Wayuri, de Diana Gandara, retrata a rede de comunicadores indígenas oriundos dos 23 povos da região do Rio Negro. O grande mérito desse documentário é valorizar o trabalho coordenado da Rede Wayuri para levar informação de qualidade aos povos indígenas e, ao mesmo tempo, combater as notícias falsas que os ameaçam. Se cinematograficamente o filme tem uma estrutura conservadora, alternando registros de procedimentos e testemunhos de pessoas envolvidas, ao menos ele é bem-sucedido como peça de exaltação dessa iniciativa tão importante para os indígenas que, sem essa rede, certamente estariam à mercê de mentiras que os tornariam vulneráveis. Premiado no Festival de Berlim 2023, o alagoano Infantaria, de Laís Santos Araújo, é mais um dos filmes da Mostra Brasil do 16º Curta Taquary que atenta ao feminino. De um lado, a menina de 10 anos de idade que deseja fervorosamente ter a sua primeira menstruação e, assim, se tornar mocinha. Do outro, a amiga mais velha, na casa dos 16 anos, às voltas com a gravidez indesejada que precisa ser interrompida. O cenário é praticamente desprovido de presenças masculinas, com exceção do menino que observa tudo aquilo sem compreender direito o que está acontecendo. O sangue é um vetor desse feminino, ao mesmo tempo sinal de maturidade e anúncio do perigo pelo qual uma menina passa precocemente a fim de resolver sozinha uma questão que competiria também ao seu namorado.
Já Último Domingo, de Renan Barbosa Brandão e Joana Claude, curta livremente inspirado num trecho de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, é uma poética releitura do nascimento de Jesus, mas focado na jornada de Maria. Visitada por um andarilho que anuncia a natividade, ela sofre com a desconfiança dos homens do povoado, é chamada de feiticeira e impedida de ficar com a terra brilhante que lhe foi entregue pelo estranho. O encerramento apresenta reviravolta brusca. Maria é vista de cabelo solto (símbolo de empoderamento) e numa realidade em que as crianças se desenvolvem sob as bençãos do feminino. Belíssimo preto e branco, ótimo elenco e um competente desenho de som contribuem para o ótimo resultado. O alagoano Nós Duas, de Wéllima Kelly e Leandro Alves, é um singelo retrato de uma mulher que chega à velhice carregando estigmas. Ao relembrar um passado remoto, se depara com as interdições impostas às mulheres de sua época. Os realizadores concentram esforços numa longa cena em que a protagonista e a filha se emocionam diante de gravações antigas. Infelizmente, os cineastas não conseguem ir além de desenhar um retrato cândido de uma mulher experiente e calejada, deixando de lado qualquer aprofundamento nos assuntos que aparecem e desaparecem. Por fim, dentro desse protagonismo feminino, O Destino da Senhora Adelaide, de Breno Alvarenga e Luiza Garcia, mostra uma senhora acometida por alguma doença relacionada à sua velhice, espectadora da discussão da trinca de filhos. Os três são sombras, figuras cuja completude não é possível alcançar, pois o foco dos cineastas é tornar nítido o percurso interno da senhora Adelaide numa chave lúdica, em que ela experimenta fases da vida em poucos momentos. Adelaide transita entre a infância, a juventude, a maturidade e a velhice ao ser descolada da realidade pela doença. É uma forma muito bonita de retratar essa condição.
A HISTÓRIA, OS PERSEGUIDOS E OS OPRIMIDOS
Outra constante na Mostra Brasil do 16º Curta Taquary é o resgate histórico de episódios e/ou personalidades e a atenção a pessoas portadoras de deficiência. Nesse sentido, e defendendo com brios o ótimo retrospecto recente do cinema mineiro, Camaco, de Breno Alvarenga, é um documentário instigante que parte de uma linguagem criada por antigos mineradores para refletir sobre diversos assuntos. Breno entrevista moradores da cidade de Itabira, localidade cercada até hoje por jazidas de exploração de minério de ferro, e eles conversam sobre esse passado de resistência, o presente em que o extrativismo está consolidado no imaginário coletivo e projetam o futuro. Esses testemunhos são entremeados por imagens de arquivo de mineração e pela voz de homens conversando em camaco, as fantasmagorias. O dispositivo não é ornamental, existe para presentificar o passado. Também fruto do grande momento da cinematografia mineira, Big Bang foi exibido anteriormente no Festival de Locarno e é dirigido por Carlos Segundo, um dos nossos principais curta-metragistas da atualidade. O protagonista é um homem com nanismo que conserta fornos e equipamentos similares. Exposto ao perigo mesmo quando decide viajar para acompanhar o funeral do pai que dele abdicou desde cedo, Chico sobrevive a um acidente e passa a dialogar com uma mulher que, assim como ele, sofre na pele o peso da opressão. A imagem está sempre na altura de Chico, o que recorta os demais personagens pela cintura (e nos priva de seus rostos), exceção feita a essa mulher que conversa com ele e compartilha os infortúnios que motivarão o encerramento: a catarse dos oprimidos contra os opressores e a dança como forma de demonstrar que se atingiu estágios de libertação.
Ladário, de Ed Junior, é um filme paraibano. Ele remonta à história de uma jovem liderança estudantil perseguida durante a Ditadura Civil-militar que desgovernou o Brasil por 21 anos. Num dos países que mais matam ativistas do mundo, o rapaz que deixou saudades e morreu em circunstâncias suspeitas durante a recreação num açude. O que os testemunhos fazem é colocar em dúvida essa circunstância, deixando no ar a possibilidade de que a fatalidade tenha sido um assassinato a mando do Estado e não um acaso. O cineasta lança mão de dramatizações, vide o ator que transita em cenários como se fosse o protagonista. Trata-se de um dispositivo comum no cinema brasileiro recente e que tem mais efetividade ilustrativa do que dramática. Já Manual da Pós-Verdade, de Thiago Foresti, é um curta-metragem criativo sobre a era da pós-verdade. O protagonista é um jornalista que aparentemente não consegue discernir entre realidade e ficção, ou seja, ele carrega a angústia inerente à sua promissão diante da informação: verdadeiro ou falso? Nessa distopia em que máquinas são zeladores da saúde mental humana e memes são utilizados como emplastros para estancar o sofrimento decorrente do contato com o real, o realizador estabelece pontes bem evidentes com a nossa contemporaneidade. O porco-bomba, animal candidato a presidente do Brasil, é uma metáfora do ex-ocupante do Palácio do Planalto Jair Bolsonaro. Desse modo, a chave absurda nada mais é do que uma exacerbação dos despautérios que tomam conta da nossa sociedade atual. O ritmo do curta-metragem é incessante, o que aumenta a urgência dos dilemas existenciais e sociais do protagonista tenso.
Por fim, dentro de um recorte mais humanista dos oprimidos e, de certa maneira, excluídos sociais, o paulista Lugar de Ladson, de Rogério Borges, tem como protagonista um jovem portador de deficiência visual. Ladson enxerga muito pouco e por isso mesmo precisa do suporte de voz de seu celular para conversar com Jéssica, aquela que parece a sua melhor amiga. Ladson quer sair daquele lugar, mas esse desejo nunca é sustentado, somente sugerido como uma possibilidade de se descolar daquilo que o oprime diariamente, um tipo de fuga para buscar o novo. Rogério Borges tenta mimetizar na imagem a deficiência de Ladson, borrando as laterais do quadro em busca de um efeito sugestivo. No entanto, acaba que isso não tem tanta efetividade como dispositivo cinematográfico, tampouco para diminuir distâncias entre o protagonista e o público. Já no seu conterrâneo Amigo Secreto, de Rui Calvo, há uma festa de Natal encenada para apaziguar a criança atípica. O que sobressai são os curtos-circuitos nas relações familiares durante os preparativos para esse Natal fora de época, bem como antes da dinâmica do amigo secreto. No entanto, o filme não vai além de apresentar situações comuns, tais como uma mulher se metendo na criação do sobrinho e a avó tentando colocar panos quentes em eventuais tensões, também não evoluindo a partir da quase ausência masculina e de uma visível exaustão feminina que recai sobre a mãe da criança atípica que motiva a reunião.
Portanto, a Mostra Brasil do Curta Taquary – a mais extensa do evento que acontece presencialmente na cidade pernambucana de Taquaritinga do Norte – nos oferece um panorama atendo a pessoas, histórias e memórias vulneráveis, disposto a reverenciar o feminino e chamar ainda mais atenção às causas indígenas. Um Brasil plural e que segue lutando.
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