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Verissimo :: “A ideia principal era observar o personagem observando”, diz o diretor Angelo Defanti

Como nos contou nesta entrevista exclusiva, o cineasta Angelo Defanti deve muito a Luiz Fernando Verisismo. Não à toa, ele havia feito três filmes baseados na obra do célebre escritor gaúcho: os curtas-metragens Feijoada Completa (2012) e Maridos, Amantes e Pisantes (2008), ambos baseados em contos, e o longa-metragem O Clube dos Anjos (2022), inspirado num livro de Verissimo. O novo capítulo dessa admiração chega agora aos cinemas. Verissimo (2024) é um documentário de estilo observacional, no qual a câmera pretende passar despercebida. Ela registra em contagem regressiva os 15 dias anteriores ao aniversário de 80 anos do artista. Filme feito de registros íntimos, conversas familiares, brincadeiras com os netos, episódios de introspecção em meio à balbúrdia dos parentes, aparições públicas nas quais Verissimo é reverenciado etc. Trata-se de um olhar muito bonito e reverente sobre alguém que contribui de modo determinante com suas crônicas ácidas, bem humoradas e perspicazes. Para saber um pouco mais sobre o processo de Verissimo, conversamos remotamente com Angelo Defanti e o resultado você confere logo abaixo.

Como realizador, você tem uma relação longa com a obra de Luis Fernando Verissimo. Mas, em qual momento da sua vida você se apaixonou pelos escritos dele?
Na verdade, isso remonta à minha relação com a leitura. Há épocas em minha vida nas quais leio muito mais do que vejo filmes. Fiz minha transição da Turma da Mônica para a prosa exatamente com o Luis Fernando Verissimo. Até de maneira meio irresponsável, eu acho, minha mãe deixou ler Verissimo ainda na infância (risos). Se não me engano era uma parte daquela coleção Para Gostar de Ler, que tinha uma capa amarela, na qual havia um conto dele chamado, senão me engano, Testemunha Ocular. Tinha duas crônicas dele nesse livro. Trata-se de um conto todo em diálogos, com travessão, e tem várias viradas. Aquilo me bateu muito forte. Brinco que essa experiência foi a minha porta de entrada para literaturas mais pesadas (risos). Virei leitor porque cruzei com Verissimo. Até mais. O fato de atualmente sobreviver contando histórias tem a ver com essa fascinação pela escrita do Verissimo lá atrás.

Então, daí a levar parte dessa obra ao cinema…
Acabei me filiando à obra do Verissimo, fazendo dela um ponto de partida. Nem sei se sou fiel aos originais, mas tem isso de profanar a origem para sempre voltar à origem. Os dois contos que transformei em curtas ganharam mudanças consideráveis na adaptação e O Clube dos Anjos (2020), apesar de manter todas as estacas originais, tem várias mudanças também. Mas ele é um sujeito que me inspira. Talvez esse documentário seja um fechamento na conexão, meio aquilo quando a cobra encontra o próprio rabo. Os meus muito obrigados estão registrados nesses filmes.

Em determinado ponto do filme, Verissimo disse que é incapaz de dizer não. Você se aproveitou disso para ele aceitar a ideia de expor a intimidade? Como foi essa negociação, visto que você teve acesso à família?
Claro que isso de ele ser incapaz de negar está inserido no filme, vide o tamanho do acesso que tivemos. Mas, essa história ganha corpo no O Clube dos Anjos, filme que demorei muitos anos para realizar. Fomos criando uma relação. A família Verissimo tinha acabado de comprar um apartamento no Rio de Janeiro, cidade onde eu morava, e além disso a vida acabou me levando muitas vezes a Porto Alegre, quando eu acabava provocando almoços na casa deles (risos). A fagulha que gerou o filme é a vontade de registrar essa família muito entrosada, que tem um patriarca ultraintrospectivo e os demais membros são super extrovertidos. Como eles consegue funcionar? Tem muita demonstração de amor pelo inaudito, pelos pequenos gestos. E isso é algo próprio da obra do Verissimo, de fazer do mínimo uma apoteose. Quando fui a Porto Alegre lançar meu primeiro documentário, Meia Hora e as Manchetes que Viram Manchete (2014), a sessão teria um debate com o Verissimo depois. Era agosto de 2015. Almocei com ele e quando propus o documentário foi “sim” na hora. Fiz uns 15 minutos de discurso e ele respondeu de pronto. Foi um “sim” meio reativo. E a ideia sempre foi a de um filme desinteressado pelos dados biográficos, coisas que você encontra na Wikipedia, por exemplo. Queríamos observar o que acontecia subtextualmente.

Um dos grandes acertos do filme, a escolha pelo formato observacional parece apropriada para fazer jus à introspecção do personagem. No fim das contas, este também é um documentário sobre a introspecção. Desde o início a sua ideia era ser a “mosca na parede”?
Sim, a ideia era emular a forma dele se colocar no mundo, observá-lo observando. Como num jogo de boneca russa. Antes de tudo, é preciso ser dito que foi muito angustiante fazer um filme nesse formato. Por mais que tivesse esperança de que coisas aconteceriam, havia a possibilidade de nada render. E isso durou o processo todo. É uma prova de resistência ser fiel a esse formato. Foram 31 dias de filmagem e 31 dias de questionamentos. Voltando ao jogo de bonecas russas, se conhecemos a obra do Verissimo, sabemos que ela é rica, ligeira, sintética e cheia de viradas. Essa é a persona pública dele. Intimamente, ele é discreto, acanhado e até taciturno. Tem um gap muito grande aí. Verissimo está quase sempre quieto, mas raciocinando muito. Então, a proposta do filme é provocar algo parecido no espectador. Num momento da elaboração, pensei até em colocar uns offs. Mas, se há instantes de silêncio e entra um off, ele meio que fecha o discurso e condiciona o espectador. Um dos baratos do documentário tem sido a recepção das pessoas. Há gente que fica angustiada com o silêncio do Verissimo, outras relatam o mesmo sentimento com o fato de sempre ter alguém “incomodando” a paz desse sujeito acanhado.

O filme tem alguns episódios muito luminosos. Você percebia essa luminosidade acontecendo enquanto cuidava de imagem, som e de tudo mais que esse projeto solicitava de você ou foi perceber apenas na montagem?
Era importante perceber na hora. Claro que teve sinal trocado, ou seja, coisas que eu achava incríveis e cinematograficamente não eram, bem como o oposto. Pra mim era importante ter algumas cismas. Registrar rotinas e perceber pequenas mudanças nelas. Por exemplo, a relação com os netos. Tanto que o resto da família, quando assistiu ao filme, se surpreendeu com algumas coisas, porque há registros da interação de Verissimo com a neta Lucinda que nem eles sabiam muito bem como era. A fisioterapia era outra rotina variável. Como ela mudava? Também é um filme que precisa de infiltrações. Sabia que a efeméride traria oportunidades, mas não há como prever um teatro inteiro cantando parabéns. Quando isso acontece é claro que temos algo especial.

Para encerrar, vamos falar do desenho sonoro, parte fundamental para construir essa atmosfera que envolve o Verissimo. Como foi esse trabalho com o som?
Que bom que você pergunta sobre o som, nem todo mundo se atenta a isso, parece uma coisa dada. Estudamos esse som de modo obsessivo. O filme registra alguém introspectivo, mas não poderia cometer o erro de também ser introspectivo. O som faz com que o filme seja quase em primeira pessoa, mesmo que não tenha narração. Tomamos cedo a decisão de que os sons do Verissimo são mais altos e, em alguns momentos, isso provoca quase um zoom. Assistimos a trechos de Playtime: Tempo de Diversão (1967), bem como aos de outros filmes de Jacques Tati em que isso acontece. Isso de o som do Verissimo estar mais alto não é sempre, tem o fade in e fade out. Tem cenas em que o som dele sobressai, mas em outras é proposital que esse som se perca no alarido ao redor. Isso é uma forma de condução sem conduzir. Eu próprio fiz o som direto. Às vezes a posição do gravador era tão importante quanto o posicionamento da câmera.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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