Raphael Montes é um dos autores mais bem-sucedidos da atualidade no Brasil. Nascido em 1990 no Rio de Janeiro – ou seja, tem pouco mais de trinta anos – atuou desde cedo na literatura de gênero, combinando elementos do suspense e do thriller policial, ao mesmo tempo em que tem se aventurado pelo cinema e pela televisão. Ao todo, já lançou oito livros, que se estima terem vendido mais de 500 mil cópias, com traduções para dez idiomas diferentes. Vencedor do Prêmio Jabuti (o “Oscar” da literatura brasileira) em 2020, estreia uma nova função em Uma Família Feliz: a de diretor-assistente! O filme, que tem José Eduardo Belmonte no comando, é estrelado por Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini, e foi exibido pela primeira vez durante a mostra competitiva do Festival de Gramado de 2023. Quase oito meses depois, em abril de 2024, o filme ganha as telas de todo o país, partindo de uma trama pensada pelo escritor e roteirista para exercer um olhar crítico sobre o nosso país. Foi sobre isso e também a respeito de suas principais influências que Montes conversou com o Papo de Cinema. Confira!

 

Rapha, um prazer falar contigo. Na literatura você está consolidado, e quem te conhece pelo audiovisual está ciente do sucesso de Bom Dia, Verônica (2020-2024). Esse mesmo clima de suspense permeia Uma Família Feliz. Já se pode dizer que essa é uma marca das tuas histórias?
Rapaz, sempre gostei do suspense, amo histórias policiais. A minha paixão pelo gênero, como não poderia deixar de ser, começou pela literatura. Na minha adolescência li todos os grandes clássicos, como Georges Simenon, Agatha Christie, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, e comecei a perceber que através da literatura policial você pode falar de violência e da sociedade. Afinal, os crimes que acontecem nesse contexto falam muito sobre esse grupo de pessoas. Naturalmente, comecei a me perguntar: cadê isso no Brasil? Claro que encontrei alguns poucos autores, como Rubem Fonseca, Patrícia Melo, Luiz Alfredo Garcia Roza, Tony Bellotto, Jô Soares. Depois fui me encontrar no Nelson Rodrigues, pelo qual sou apaixonado. Foi quando entendi que fazer suspense no Brasil era uma maneira de falar da sociedade brasileira e de questões nossas. Faço isso nos meus livros, e por isso quis fazer também nas telas. Nunca me vi como um escritor. Penso em mim mais como alguém que conta histórias. E as conto onde me deixam contá-las (risos). Se for num livro, que assim seja. Se for no cinema, bora lá.

Então Bom Dia, Verônica foi só um primeiro passo, é uma linha que está seguindo, e não mera obra do acaso?
Com certeza, foi coisa pensada. Desde a publicação do meu segundo livro, Dias Perfeitos, em 2014, e que desde então foi publicado em 25 países – saiu em árabe, em chinês, é muito legal – comecei a ser convidado a escrever roteiros. O primeiro foi para uma série baseada num livro do Luiz Alfredo Garcia Roza, o Uma Janela em Copacabana, que virou a minissérie Romance Policial: Espinosa (2015), com Domingos Montagner. Lembro que fui convidado para integrar essa sala de roteiros como conhecedor da literatura, e não como roteirista. Mas gostei do ambiente, era um clima legal. Converso muito, estou sempre perguntando, acho importante esse processo de troca. Nunca acreditei na ideia do autor encastelado, isolado de tudo e todos, que escreve a grande obra. Acho que, necessariamente, é um processo coletivo. Até na literatura! Por exemplo, dialogo muito com o meu editor até chegar o momento da publicação.

 

Sair da televisão e ir agora para o cinema com o Uma Família Feliz. É um novo tipo de desafio?
Sem dúvida. Havia escrito roteiros para o cinema antes, mas nenhum era autoral, ou seja, fui convidado para escrevê-los. Uma Família Feliz, no entanto, é um projeto que nasceu comigo há quase uma década. Primeiro como cinema, porque achei que tinha uma coisa visual nela, uma plasticidade. É um roteiro original, portanto. Tem algo que necessita da imagem, sabe? Essa ideia da perfeição, e também por isso escolher esse elenco. Então, sim, é um novo desafio. E também porque detesto ficar acomodado num lugar só.

Raphael Montes (à frente), o diretor José Eduardo Belmonte (ao fundo) e, entre eles, o elenco de Uma Família Feliz

Nesse caso, portanto, foi o caminho inverso: do cinema para a literatura.
Sim, é uma coisa que me interessava. É por isso que agora já temos Uma Família Feliz nas livrarias. Não nasceram ao mesmo tempo, porque demora para escrever um livro (risos), mas veio um após o outro.

 

Como foi o envolvimento com a realização do filme? Escreveu o roteiro, entregou e “vocês que se virem a partir de agora”, ou acompanhou as filmagens e participou ativamente do início ao fim?
Como o processo demorou anos, de algum modo esse filme, Uma Família Feliz, acompanhou o meu próprio amadurecimento como roteirista. Veja, por exemplo: a primeira versão do roteiro de Uma Família Feliz foi o primeiro roteiro que escrevi na vida! E, desde então, fiz o Espinosa, fui para a TV Globo, trabalhei em vários projetos de séries, saí e fiz Bom Dia, Verônica, escrevi filmes encomendados, como o Praça Paris (2017), da Lúcia Murat, ou os do Caso Richthofen, e isso tudo acontecendo enquanto fazia novas versões do Uma Família Feliz. Passou por dois laboratórios, o Varilux e o Novas Histórias, também contou com as colaborações da Ilana Casoy e do Gustavo Bragança. Ou seja, foi amadurecendo conforme eu amadurecia.

 

Como foi se colocar também na função de diretor assistente?
Quando chegou a hora de filmar, falei pro Belmonte, o diretor: “eu mudei ao longo destes oito anos, e cada vez mais tenho interesse em colocar na tela as coisas do jeito que as imaginei”. Tem uma frase do Billy Wilder que adoro e que diz que ele decidiu virar diretor porque, se era para estragar os roteiros dele, ele mesmo estragava (risos). E confesso que vivi algumas experiências parecidas com essa. Então, se é para estragar os meus roteiros, eu mesmo estrago! Por isso que pedi para estar junto no set, como diretor assistente. E o Belmonte foi super generoso, e pude acompanhar o processo todo, desde escolhas como direção de arte e figurino como detalhes de fotografia. Participei das leituras, de ensaios com os atores, estive no set das filmagens. Ou seja, esse era o filme que havia imaginado.

Raphael Montes e equipe de Uma Família Feliz no Festival de Cinema de Gramado 2023

Há roteiristas que são ciumentos com cada palavra, que não permitem improvisações. Você lidou bem com esse tipo de liberdade dada aos atores?
Mas quem estava no set não era o roteirista, era o diretor assistente (risos). Por ser uma história de gênero, o que o roteiro tem de forte e que não se pode mexer é a sua estrutura dramática. Ou seja, tem viradas narrativas que precisam ser respeitadas, e não apenas no set de filmagens, mas também na montagem. Ou seja, o ritmo da história está desde o roteiro. E essa base precisa ser sólida. Agora, internamente, nas cenas, você brincar e colocar um caco e tal era super bem-vindo. Não sou “ciumento” com as minhas palavras, como você colocou. Acredito muito no trabalho coletivo. Posso te dar exemplos em Uma Família Feliz: filmamos em Curitiba, passamos um mês por lá. E, durante esse tempo, vi muitas bandeiras do Brasil nas janelas dos apartamentos. Isso em 2022. Um belo dia, quando estávamos indo para o set, comentei: “Belmonte, naquela cena final, e se a gente colocasse uma bandeira do Brasil?”. Ele não me respondeu de imediato, pediu para pensar, mas no dia seguinte já tinha aprovado a ideia. O roteiro estava vivo e em transformação o tempo todo, e isso é ótimo.

 

Como manter o elemento surpresa até o final? M. Night Shyamalan é um diretor que brinca muito com isso. Bate uma insegurança na hora de bolar o desfecho da história?
Acho interessante você citar o Shyamalan, porque certamente é uma referência para esse filme. Tem até uma cena que homenageia O Sexto Sentido (1999). Mas tem também um pouco de Hitchcock, Chabrol, Haneke. Nelson Rodrigues, sem dúvida, é uma referência fortíssima. Mas sobre o final, é engraçado, mas não acho que seja a pior coisa o público antever a solução do mistério. Pra mim, é muito mais frustrante que me digam que “era impossível acertar”. Isso não gosto de ouvir. Gosto de contar histórias, desde a literatura, mas também no cinema e na televisão, que eventualmente, se tem alguma coisa que acontece no final, você tem como descobrir. Então, se algumas pessoas antecipam, acho ótimo. É porque pegaram as pistas e estavam atentas. Claro que é para que não acertem. Não pode ser tão óbvio, mas também não vou roubar no jogo e esconder as pistas e propor uma virada só pela surpresa.

Uma Família Feliz tem um antes e um depois de resolvido o mistério da trama, portanto?
Sim, como no Sexto Sentido. É um filme que te propõe diferentes experiências. A primeira, sem saber do final. E se for assistir novamente, já será um outro filme, pois o quebra-cabeça começa a se fechar. Pois você irá perceber que estava tudo lá desde o início.

Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2023

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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