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Sinopse

Acusada pela sociedade como a principal suspeita de uma série de estranhos acontecimentos, Eva precisa provar a sua inocência e para isso começa uma investigação espinhosa.

Crítica

O casal é digno de um comercial de margarina: Reynaldo Gianecchini e Grazi Massafera. Poucas duplas no cinema brasileiro poderiam incorporar com tamanha precisão este estereótipo. E não é por acaso que se encontram no meio da trama de Uma Família Feliz. Afinal, é justamente essa a ideia: um conjunto perfeito, de estética inalcançável, que aos poucos vai sendo corroído, se desmontando, até nada mais restar. A premissa, se não original, ao menos preserva elementos suficientes para despertar curiosidade. Mas uma vez visto que tais atrativos não são mais do que isso – forças de brilho intenso, mas de conteúdo escasso – o interesse vai, gradualmente, se esvanecendo. Pior do que o desempenho daqueles à frente das ações, no entanto, estão em suas performances os dois que respondem tanto pela ideia como pela condução de tais eventos. Se o roteiro é frágil no argumento, é ainda mais problemático em sua resolução. Estará, no entanto, nas opções assumidas por aquele no comando o caminho rumo a uma frustração oriunda não apenas pelas respostas improváveis oferecidas ao término de tal jornada, mas também pelas rotas tortuosas pelas quais personagens e espectadores se viram obrigados a percorrer, sem que algo de peso seja concedido em retorno.

Mas nem só de tropeços se faz Uma Família Feliz. Há escolhas acertadas, e elas precisam ser apontadas. Vicente (Gianecchini) e Eva (Massafera) estampam, com seus sorrisos de um branco reluzente, o quadro no alto da escada. A felicidade se espalha pela casa ampla onde moram na companhia das filhas gêmeas, e que em breve ganhará mais um morador: a mulher está grávida. A impressão é que nada, nem ninguém, poderia acabar com tamanha perfeição. Obviamente, não é bem assim. Essas fissuras, pequenas rachaduras que revelam a imperfeição de uma imagem invejável apenas quando vista de longe, vão se tornando visíveis aos poucos, sem pressa. Eis uma jogada inteligente, pois a cada novo entendimento que se apresenta, a situação em jogo muda de configuração. A verdadeira natureza da relação entre os dois protagonistas, o histórico amoroso dele, uma tragédia no passado, a resistência das meninas em relação a esse desenho familiar, e o que representa a chegada de um terceiro filho. Tudo a seu tempo. Um passo de cada vez, permitindo o respeito necessário para que a audiência crie familiaridade com um ciclo tão fechado, e portanto, claustrofóbico, que irá se cercando de forma irreversível.

Sim, pois Vicente e Eva não desfrutarão dessa tranquilidade de revista por muito tempo. Primeiro, um estranhamento começará a ganhar contornos mais nítidos: ela está sempre cansada, ele busca uma promoção no trabalho, nenhum dos dois parece disposto a ceder para atender às demandas mais banais, como cuidados com os filhos e com a casa. Depois, as coisas ficam mais graves. O filho aparece com um hematoma na barriga. Logo em seguida, serão as meninas que revelarão marcas pelo corpo. E, para piorar, uma delas está enfrentando uma doença séria, e a impressão que se tem é que a medicação, que deve ser tomada em horários regulares, não está mais fazendo efeito. É o castelo de cartas prestes a desmoronar. E com sua queda, tem tudo para soterrar também os moradores dessa ilha indefesa, fácil demais de ser alcançada pela inveja daqueles ao seu redor, que não tardarão em destilar suas amarguras, seus julgamentos e precipitações. Sem que nenhum tipo de defesa ganhe vez, a condenação não tardará em se fazer presente.

Sim, pois haverá uma única explicação para tantos incidentes: a inabilidade da mulher em levar adiante esta combinação acima de qualquer suspeita. A misoginia do olhar proposto não permite equívocos, pois a dúvida em nenhum momento irá se dirigir ao marido: é ela a fraca, a que não é confiável, a que não tem voz e a que será motivo de ataques diversos. A ele caberá um posto quase inalcançável, de vítima e, por que não, do benevolente que concedeu todas as chances, apenas para ser traído em sua crença. Quando ameaçado, ele se mostrará tão infiel quanto os vizinhos, e estará no afastamento e nas acusações de insanidade o seu escape. O problema, aqui, estará na escassez de possibilidades. Todas as evidências se dirigem a Eva com tanta insistência, que ficará evidente a qualquer um minimamente familiarizado com o gênero a certeza de sua inocência. Restará a ela, portanto, provar que não foi responsável pelas barbaridades que lhe acusam – sem que o contrário, que seria o normal (ou seja, a comprovação de sua culpa) se faça necessário. A torcida, portanto, é direcionada, manipulada por um enredo não muito preocupado com nuances. Mas se há praticamente dois adultos em cena, e os olhos estão todos voltados em uma única direção, não seria óbvio antever o envolvimento do outro nos atos cometidos? Nessa dinâmica esquemática, o surgimento de uma terceira via se mostra tão implausível quanto insustentável.

Na primeira metade do filme dirigido por José Eduardo Belmonte (um cineasta que tem se esforçado em demonstrar versatilidade, ainda que falhado nestas tentativas), tanto Grazi Massafera quanto Reynaldo Gianecchini entregam ao público exatamente o que deles se poderia esperar: plasticidade e conforto. Porém, o texto de Raphael Montes (Bom dia, Verônica, 2020-2022) está mais interessado nas reviravoltas que irá introduzir adiante, do que em proporcionar condições para seus intérpretes não se afastarem de suas zonas de conforto. Assim, à medida em que a pressão sobre eles se abate, o descontrole também começará a se manifestar. Se Gianecchini conquista pelo charme e simpatia, toda vez que precisa despertar desconfiança resvala em trejeitos forçados de um vilão de folhetim. Já Massafera se revela capaz de transitar por um quadro de depressão pós-parto, mas seu estado de incredibilidade diante de tamanhas acusações soa mais como ingenuidade do que em não saber lidar com tantos absurdos. Da mesma forma, o plano que estabelece ao tentar recobrar suas forças é por demais esquemático para se mostrar verossímil. Esses, no entanto, são pormenores diante do desfecho árduo que Uma Família Feliz tenta defender sem muito jeito, daqueles difíceis de engolir. Um bandeira que pode até estar empenhada, mas que se mostra tão falsa quanto a piscada de olho final que deveria ter um efeito, mas tudo que alcança é o contrário.

Filme visto em agosto de 2023, durante o 51o Festival de Cinema de Gramado

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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