Entre as opções de comédias, dramas, filmes de animação e clássicos do 12º Festival Varilux de Cinema Francês, um suspense chama a atenção: Um Intruso no Porão (2021), de Philippe Le Guay. O diretor, conhecido por suas comédias dramáticas, investe na história tensa de Simon Sandberg (Jérémie Renier), um homem judeu que vive com a esposa Hélène Sandberg (Bérénice Bejo) num apartamento de classe média em Paris. Eles vendem o porão a Jacques Fonzic (François Cluzet), um homem desconhecido que, para surpresa de todos, passa a viver no local.
Aos poucos, a família descobre que o tipo suspeito passa o dia inteiro espalhando notícias falsas e teses negacionistas a respeito do Holocausto. Fonzic ameaçar a paz de todos os moradores do prédio, confrontando Simon às suas origens e escancarando a dificuldade de lidar legalmente com as teorias conspiratórias em tempos de Internet. Le Guay filma esta história real com os requintes perversos de uma obra hitchcockiana, sem medo de utilizar imagens e símbolos fortíssimos para representar o antissemitismo. O cineasta veio a São Paulo e ao Rio de Janeiro para promover o projeto, e conversou com o Papo de Cinema sobre os desafios deste filme:

O diretor Philippe Le Guay

Por que escolheu contar a história pelo ponto de vista da família judia, ao invés daquele do homem no porão?
Primeiro, eu me identifico à família Sandberg, mas não consigo me identificar com o homem no porão. Esta é uma questão de percepção em relação ao novo habitante: para a família Sandberg, ele se torna um intruso. Fonzic tem uma aparência comum, mas aos poucos ele destrói a harmonia do casal. Eu tinha que me posicionar junto à família. Além disso, existe uma questão: quem é o realmente o homem do porão? O que ele faz durante o dia inteiro? A personagem de Bérénice Bejo faz esta pergunta. Ele fica na Internet, espalhando mentiras sobre a História. Não queria me aproximar deste personagem, me filiar a ele. Caso passasse os dias junto a Fonzic, este seria um filme completamente diferente. Tentei, através de interlocutores diferentes (o pai, a mãe, a filha) mostrar o funcionamento deste intruso, e a estratégia dele. Fonzic não fica às sombras: ele está visível, e possui complexidade. Mas eu não poderia me posicionar perto dele. Se Michael Haneke contasse essa história, ele faria pelo ponto de vista de Fonzic, sem dúvida! Eu não consigo ter simpatia pelo mal, mas mostro o seu poder de sedução, seu perigo e sua miséria. Fonzic é miserável, no sentido estrito do termo. Ele reclama: “Eu não tenho nada, apenas esse porão. Até isso vocês querem tirar de mim!”. Nesse sentido, ele tem razão. No entanto, não querem lhe retirar o porão sem motivo algum. Fonzic criou as condições de sua miséria.

As leis francesas protegeriam de fato o homem no porão? De que maneiras podemos combater os negacionistas próximos de nós?
Na França, o negacionismo é considerado um crime. Existe uma lei que proíbe a negação de crimes contra a humanidade, e a solução final foi um crime contra a humanidade. Isso também vale para o genocídio armênio. Não existe o direito, na França, de negar a existência desses acontecimentos. O tema gera fortes discussões em todos os países da Europa. Nos Estados Unidos, considera-se que o indivíduo tem o direito de dizer que o Holocausto jamais existiu. O filme explora a estratégia de fragilização: como um homem, de maneira perversa, destrói a noção de verdade? Tentei mostrar a retórica dele, sua linguagem. Uma frase resume bem esta abordagem: “Eu só levanto dúvidas”. Fonzic diz isso sempre: “Sou um pesquisador, faço questionamentos”. Todos os pesquisadores levantam questionamentos, mas nós queremos avançar na realidade, enquanto ele deseja destruir a realidade.

Você usa símbolos fortes no filme: as pichações antissemitas, a metáfora dos ratos no porão, o imaginário da câmara de gás. Não tinha receio de ser percebido negativamente por essas imagens?
Bom, existe a cena de um personagem preso, com a fumaça entrando, mas ela vem do fogo, não seria uma câmara de gás… O centro da história, e a loucura dessas metáforas, se encontra na ideia de que o negacionista assume o lugar dos judeus. Eu nem inventei essa história, porque isso ocorreu de fato. Ele se torna o judeu. Seu próprio ódio acaba por transformá-lo na figura odiada. Compreendo, que nos anos 1940, o tio Sandberg tenha se escondido no porão, e durante a guerra, muitos judeus se esconderam em porões para escaparem aos nazistas. O personagem de Cluzet assume esta inversão de postura: em sua compreensão, ele é a verdadeira vítima. Durante muito tempo, os judeus foram associados aos ratos. Fonzic vira do avesso esse imaginário, estimando ser ele o judeu, neste caso. Era preciso explorar esta linguagem para sublinhar a impostura deste homem. Felizmente, no confronto final, o personagem de Cluzet assume seu ódio, que tinha preservado até então. 

Cluzet interpreta Fonzic com uma voz doce e uma expressão sorridente, enquanto os Sandberg gritam e agridem. O espectador não poderia tomar a defesa do intruso negacionista, neste caso?
Você sublinha a ambivalência do filme. Eu queria manter essa ambiguidade: obviamente, eu nunca tomo partido pelo negacionista. O casal vivia em harmonia, com amor, em família. Aos poucos, eles são confrontados à sua história pessoal. O personagem de Jérémie é um judeu que quer esquecer sua origem judia, mas o negacionismo o obriga a assumir sua identidade. Enquanto isso, a personagem de Bérénice Bejo deseja compreender o negacionismo: ela procura livros, lê artigos. O veneno do homem no porão intoxica este casal, que se desequilibra. Durante todo o filme, Jérémie Renier tenta ser racional e preservar a lei: ele visita três advogados para tentar resolver o caso. Ele não é o tipo que quer bater em Fonzic desde o começo. Este pai apenas se desespera quando vê que o perigo se aproxima de sua filha. Existe um longo percurso rumo à cólera dos Sandberg. Mas entendo que exista uma confusão nesta estratégia de inverter os valores. Isso faz parte da loucura do tema. Queria realmente que o espectador ficasse perturbado com essa configuração, mas não terminamos na ambiguidade: no clímax, Fonzic diz realmente tudo o que pensa, ele extravasa a sua cólera. Neste momento, é impossível acreditar que ele seja uma vítima. Sem este momento, o filme poderia realmente ter uma leitura ambígua. O grande mistério é: de onde vem Fonzic? O que ele deseja de fato? Como o nosso mundo fabrica a antiverdade? Minha ambição era fornecer uma leitura da retórica que vive ao nosso redor atualmente.

A garota adolescente começa a simpatizar com as ideias negacionistas. Acredita que a juventude seja mais propensa à sedução pela extrema-direita?
Não. Os jovens são mais vulneráveis à multiplicação dos discursos. Eles se distanciam da verdade histórica, que é fatual, decorrente de um longo e árduo trabalho de pesquisa. Este também é um trabalho de transmissão. Eu faço parte de uma geração que encontrou os sobreviventes dos campos de concentração. Escutamos as palavras deles, vimos seus rostos, lemos os livros de história. Nada substitui a palavra de um sobrevivente. Mas a nova geração não teve contato com estas pessoas, e se distancia dos livros. Sobra uma versão contra a outra, como se todas se equivalessem. Existe uma questão moral, filosófica e cultural muito forte. A personagem da garota era fundamental ao filme, dramática e filosoficamente. No final, ela não pensa como Fonzic, não nega o Holocausto. Mas ela pondera: “Todo mundo está atacando ele, mas ele só está fazendo perguntas”. Ou seja, ela não rejeita Fonzic por completo.

Você é conhecido pelos dramas e comédias dramáticas. Quais foram os desafios de fazer um suspense tão sombrio? A mesma premissa caberia nas regras de um drama clássico, por exemplo.
Foi a história que exigiu esta forma. É o suspense que garante a sedução dessa história. Já tinha feito um filme chamado Trois Huit (2001), que se passava numa usina de fabricação de garrafas — este foi o meu único suspense antes de Um Intruso no Porão. Ele aborda a relação entre os funcionários dessa usina, durante a noite, e discute o assédio moral. Existe uma manipulação perversa entre os personagens. Neste caso, o protagonista também tinha um filho que se tornava o melhor amigo do carrasco. No final, esta amizade desgasta o relacionamento com o pai, e termina num grande confronto entre os dois adultos, numa estrutura semelhante a Um Intruso no Porão. Gosto de estudar a proximidade do desconhecido. Quando o protagonista conhecia as moradoras em As Mulheres do Sexto Andar (2010), ele descobria um novo mundo. É como Além da Imaginação, mas de fato, nunca precisamos ir muito longe para encontrar o desconhecido: basta abrir uma porta, seja ela do porão ou do sexto andar. 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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