Isabel Zuáa é uma das grandes revelações do cinema falado em língua portuguesa. Nascida na capital portuguesa, teve seu primeiro papel de destaque no cinema justamente em uma produção brasileira: o drama histórico Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, selecionado para o Festival de Berlim e que rendeu a ela o reconhecimento como Revelação do Ano no Prêmio Guarani 2018! No ano seguinte voltou à premiação, concorrendo dessa vez como protagonista por As Boas Maneiras (2017), desempenho esse que lhe valeu troféus nos festivais de Viña Del Mar, Sitges e Bilbao, entre outros. Aos poucos, tem se dividido entre projetos no cinema e na televisão, no Brasil e na sua pátria-mãe, Portugal. Dentro desse contexto, talvez nenhum outro longa possa se encaixar melhor do que Um Animal Amarelo, de Felipe Bragança, filmado nos dois países (e também em Moçambique). No papel de Catarina, não só aparece em cena como uma mulher forte e orgulhosa das suas origens, como é também a voz que conduz o espectador pela trama. Para saber mais sobre esse trabalho, que está participando da Mostra Competitiva de Longas Brasileiros do 48º Festival de Cinema de Gramado, conversamos com a atriz, em uma conexão entre Porto Alegre e Lisboa, onde mora atualmente. Confira!
Olá, Isabel. Como surgiu o convite para participar de Um Animal Amarelo?
Quem chegou até mim com o convite, se não me engano, foi o próprio Felipe Bragança, nosso diretor. Veio falar sobre essa história que seria o filme Um Animal Amarelo, me pedindo para fazer um teste. Tinha que ser uma atriz negra, portuguesa, de ascendência africana, e que soubesse cantar. Isso foi curioso, pois trazia um pouco da contradição dessa mulher, que é super forte, resistente, mas também tem a sua fragilidade. Infelizmente, esse lado dela acabou sendo cortado da versão que chegou às telas. Mas no teste ela estava lá, e fiz cantando, e também com alguns diálogos da personagem. E veja bem, tudo isso sem ter acesso ao roteiro inteiro, só com o que conversamos sobre as experiências dela. Você fica imaginando quais seriam essas situações. Tinha que trazer essa magia do encontro, daquele momento em especial que ficou registrado, sem o antes e o depois. Com o filme pronto, já no seu contexto, vê-lo foi muito diferente do que havia imaginado. Uma surpresa positiva, claro, mas por outro lado era outra perspectiva, diferente do que havia pensado. Tem alguma coisa forte, uma união entre esses personagens. Uma solidariedade africana, digamos. O filme tem algumas questões, como o diamante que desaparece e ficou com o animal. Existiu uma trapaça, todos foram enganados. Enquanto criadores, sempre é bom sermos surpreendidos.
Vamos falar da Catarina. Quem é essa mulher? O que você achou do filme assumir o ponto de vista dela?
Narrar a história também foi uma surpresa. Isso só me foi proposto depois de termos feito todas as filmagens, era algo que não estava programado. A Catarina é uma mulher, negra e africana, de Moçambique, que traz consigo esses resquícios da colonização. Ela tem uma relação complexa com o branco no seu território, mesmo quando está em Portugal. De alguma forma, a personalidade dela é uma resposta a opressão histórica que sente. Tem esse resquício do pós-guerra e de todos esses traumas, dessa desigualdade social, política e humana, de países que foram violentados por colonizadores. “O que você faz com o que te fizeram?” Essa é uma frase que pensamos muito durante as filmagens. Diferente de muitas pessoas que conheci em Moçambique, ela não tem uma postura de alienada, passiva sobre essas relações. Muito pelo contrário, é inflexível, tenta achar estratégias de sobrevivência e de reparação histórica. Não se conforma com o que viveu, com o que a mãe dela viveu – outra coisa que também não está muito explícita no filme, mas que era um dado que tínhamos nos bastidores. Essas relações, sempre desiguais e desonestas, por parte dos colonizadores, ainda ressoam nela. É fruto disso, não tá pacífica dentro dessa história. Ela quer justiça, afinal.
Como foi entrar em um filme sem conhecer a história que você iria contar?
Foi curioso, pois para mim, enquanto artista negra, é importante saber o enredo. E me deparei com essa questão de não saber todo o roteiro da história, de pensar a partir de outras perspectivas. Estava não necessariamente reticente, mas um pouco cautelosa. Mais ou menos como a própria Catarina, apesar dela ser um furacão. Não tem constrangimento de ser e estar, de se colocar diante dos sentimentos que a movem. Afinal, estes são os motores do seu dia a dia. Tem uma cena, no filme, que ela fala que ‘esse brasileiro ainda não desistiu’. Ou seja, estava testando a paciência dele. Trabalhamos outras vertentes, o processo de discussão foi muito rico, e até chegamos a filmar, mas muito caiu durante o corte final. Ela quer saber se esse homem, branco e brasileiro, poderá ser um bom aliado. Ela faz uso da complexidade das relações entre esses países para poder arquitetar um plano, de vingança e de superação.
Você já conhecia o diretor Felipe Bragança? Como foi trabalhar com ele?
Não o conhecia. Fui conhecer os filmes dele após ter sido selecionada para fazer parte do elenco. A gente ensaiou bastante. Durante esses encontros, falamos muito sobre as questões que moviam cada personagem. Os núcleos da história, como se davam essas interseções, ele nos escutou bastante. Vinha com propostas, mas também ouvia o que a gente estava propondo. Quando queria mudar, buscámos sempre o meio termo entre um lado e outro. Foi muito interessante colaborar com o Felipe. O espaço cênico que ele cria para o elenco é quase sagrado, sem contato com muita parte da equipe, justamente para haver uma maior concentração. É um contexto diferente, afinal. Sobre a voz em off, como disse, foi algo posterior. Fiquei na dúvida, mas depois ele me disse que essa perspectiva, dessa mulher já transformada – como ela narra e como age tem esse balanço, essa diferença, são pontos distintos da jornada dela. Está mais leve, observando de fora. Quase onisciente, vendo de uma distância segura. Ali ela é mais humana, e a narração traz outra camada ao conjunto.
A trama de Um Animal Amarelo é muito fabular, quase uma viagem onírica. Como você tem percebido a relação do público com o filme?
Os feedbacks que me chegam têm sido muito positivos. As pessoas não esperavam que o filme fosse trilhar por esses caminhos, então tem se surpreendido bastante. Tenho ouvido comentários muito interessantes também sobre a Catarina, o Fernando, personagem do Higor Campagnaro, e também sobre a Suzaninha, da Catarina Wallenstein. Gostam muito também do meu ‘trio africano’, por assim dizer, ao lado da Lucília Raimundo, que faz a Seixas, e do Matamba Joaquim, o Cesarino. Esse grupo, que é o pilar da minha personagem, me deixou muito feliz. Vamos nos equilibrando dentro de todas essas adversidades, dessas condições que 2020 tem nos apresentado. Mas, no geral, tem sido muito bom, positivo. Claro, muita coisa me escapa, mas até agora tem sido ótimo.
Vocês filmaram em Moçambique e em Portugal. Como foi enfrentar essa logística das filmagens?
Em Portugal, tínhamos uma equipe um pouco maior. Foi interessante, pois sou filha de africanos, nascida em Portugal. E a minha personagem não, ela nasceu em Moçambique. Isso faz diferença, promove um ruído no equilíbrio das relações. Foi incrível gravar em Portugal. Mas veja bem, não filmamos cronologicamente. Fomos depois para Moçambique, e isso gerou uma mudança de perspectiva curiosa também. Tudo foi se contaminando por cada lugar. No Brasil, já vinha com as experiências de Portugal e de Moçambique. Pra mim, foi minha primeira vez filmando em território africano, fe ui muito bem recebida. Uma experiência emocionante e acolhedora.
Um Animal Amarelo estreou no Festival de Roterdã e tem circulado por vários festivais. Agora, está na mostra competitiva de Gramado. Quão importante é participar desse tipo de evento?
Isso é muito bom. O cinema tem dessas coisas. Estou fazendo uma peça de teatro agora, por exemplo, em Portugal. Teatro tem efemeridade, além do limite de público em cada espaço. Agora, a iniciativa de Gramado, em exibir os filmes pelo Canal Brasil, é maravilhosa. Afinal, nosso filme chegou a lugares que nunca havíamos imaginado. Os festivais são importantes, mas acabam reduzidos a uma elite de cinema, só quem tem acesso a eles. Ao passar na tevê, aumenta-se esse público, gerando um retorno mais diversificado. Recebi mensagens de pessoas que não conheço, de todo o Brasil. E também do exterior. Tudo isso tem me deixado muito feliz. Os objetos artísticos, por mais que se aproximem ou se distanciem de nós, devemos refletir sobre eles e por nós próprios. Desde que a gente se questione enquanto humanos e artistas, o esforço é válido.
Para terminarmos, o que é o animal amarelo?
Para mim, ele já é uma transformação do imaginário do protagonista. Essa herança que o Brasil traz, enquanto país, carrega muito disso, da sua ancestralidade, que às vezes tá mais próxima, ou mais longe. Na nossa imaginação, as referências que vamos somando, criamos vários fantasmas e ídolos. O animal amarelo faz parte dessa transformação do próprio Felipe, o diretor, mas também do Fernando, o personagem principal. Isso tudo na minha opinião, claro. Tem esses resquícios de ser um personagem de Moçambique, uma alma, ou mesmo uma energia. Mas, pra mim, é uma ressignificação.
(Entrevista feita por telefone, entre Brasil e Portugal, em setembro de 2020)
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Já faz mais de 5 anos que trabalho com isso. Para mim foi como assinar a carta de alforria. Uma verdadeira libertação.