Roteirista e diretor de cinema, Emerson Maranhão nasceu em Arapiraca, no agreste alagoano, mas há 23 anos mora e atua no mercado cearense. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Alagoas, tem formação técnica em Realização Audiovisual pelo Instituto Dragão do Mar (CE) e em Narrativas Transmidiáticas pela Baltic Film, Media, Arts and Communication School, na Universidade de Tallinn, na Estônia. Em 2021, foi o único brasileiro indicado ao prêmio Freedom of Expression Award, em Londres, Inglaterra. Com seu curta de estreia, Aqueles Dois (2018), foi selecionado para mais de 60 festivais e mostras nacionais e internacionais e conquistou vinte prêmios. Transversais, o primeiro longa que assina, é uma continuidade desse projeto, ampliando o olhar sobre a questão da transexualidade. Exibido no Mix Brasil, no Cine Ceará e no Fest Aruanda, o documentário chega agora aos cinemas de todo o Brasil. E o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema sobre esse projeto que mesmo antes de chegar às telas já estava dando muito o que falar. Confira!
Olá, Emerson. Se não me engano, o Transversais nasceu como uma série para a televisão, certo? Como foi esse processo de transformá-lo em filme?
Exatamente. Acontece que nos inscrevemos em um edital das televisões públicas, promovido pela Ancine. Fomos selecionados, só que houve aquele imbróglio envolvendo o inominável, e acabamos sendo censurados. Quando anunciaram que não iriam levar o edital adiante, decidimos, eu e o Allan Deberton, que é produtor do filme, que mais do que nunca teríamos que tirar do papel. Se havia um empenho tão grande em cercear essa pauta, em calar essas vozes, era questão de honra pra gente dar maior ressonância a essas histórias. Foi quando começamos a trabalhar com a possibilidade de um longa-metragem. Era para ter sido uma série de cinco capítulos, com até 45 minutos por episódio. Cada um desses segmentos falaria de um personagem em particular. Nosso desafio, portanto, foi adaptar essas histórias para um longa-metragem documental.
Esse processo levou quanto tempo?
Então, foi um trabalho que nos exigiu bastante, e ocorreu ao longo de quase dois anos. A gente foi adaptando também nossas necessidades, tentando viabilizar parcerias, coproduções. Mas a coisa começou a andar, de fato, quando conseguimos o apoio da lei Aldir Blanc. Ficamos em primeiro lugar no edital do Ceará para documentários.
Sobre as filmagens, aconteceram antes ou depois dessa mudança? Tiveram que refilmar alguma coisa por causa dessas alterações?
Não tínhamos filmado nada até então. Apenas a sequência da Parada, que havíamos feito esse registro em 2019, mas para um outro projeto, e reaproveitamos. Como nela já apareciam o Caio, a Mara, a Érikah, todos personagens que estão no Transversais, decidimos usar no corte final do filme. Mas a fotografia principal, todo o resto do que se vê no longa, foi rodado em fevereiro do ano passado, de 2021. Nas quatro semanas do mês. O resultado da lei Aldir Blanc saiu em dezembro de 2020, e as gravações ocorreram em fevereiro de 2021.
Bom, então além dos problemas anteriores, ainda tiveram que lidar com a questão da pandemia. O quanto isso representou em novas dificuldades?
Foi bem difícil. Quando começamos a filmar, ainda não havia chegado a segunda onda do Covid. Ela nos pegou bem no meio das gravações. Então tivemos que correr contra o tempo, porque ainda tínhamos que lidar com o horário do toque de recolher. Isso nos obrigou a mudar o plano de filmagens quase que diariamente a partir da segunda semana. Terminamos no dia 28 de fevereiro, e em março foi anunciado o lockdown em Fortaleza. Foi por poucos dias que não tivemos a produção totalmente inviabilizada. Tudo foi mais trabalhoso, tivemos que adotar vários cuidados. Inclusive, um dos personagens coadjuvantes morreu de covid. Era o pai da amiga da Érikah. Um senhor que aparece falando sobre o quanto ela se tornou amiga da filha dele e de toda a família. Aquelas são as últimas imagens dele, pois morreu pouco tempo depois de o termos filmado.
Antes mesmo do filme ficar pronto, houve uma situação com o governo federal, que você mencionou rapidamente. Poderia falar mais a respeito?
É isso. Estávamos na final de um edital de televisões públicas, que tinha uma categoria específica de diversidade de gênero. Era um vencedor por região, e nós éramos o vencedor da Região Nordeste. Tinha os meninos da Afronte na Centro-Oeste, por exemplo. Só que aconteceu que, durante uma live, o inominável anunciou que tinha descoberto filmes que estavam prontos para serem financiados por recursos públicos e que ele teria conseguido “abortar essa missão”. Essas foram as palavras dele. E o primeiro filme que citou foi, justamente, o Transversais – que, na época, nem filme era, a ideia original era para ser uma série, como comentei antes. E disse: “veja só, um filme sobre cinco pessoas transgêneras no Ceará! Já foi pro saco!”. Nós ficamos impactados com essa história, obviamente. Na verdade, não assisti à live, graças à Deus. Acontece que tinha ido dormir cedo, pois no dia seguinte iria viajar. Na sexta-feira, ao acordar, tinham várias chamadas não atendidas no meu celular, diversas mensagens, um monte de gente me procurando. E eu sem entender nada. O Allan tava desesperado tentando falar comigo. Afinal, era uma boa e uma má notícia. A boa é que havíamos ganho o edital. A má é que o edital não iria existir mais. Virou uma bola de neve, com repercussão nacional e internacional. Foi o primeiro ato de censura ao audiovisual desse governo.
Chamaria de censura o ocorrido?
É censura o que aconteceu. Censura por questões temáticas. O governo anunciou que não iria permitir a realização de um filme sobre esse assunto, disse que iria “abortar” o projeto. Tanto abortou que o filme existe e agora está estreando em circuito comercial por todo o país. Tomamos como uma determinação pessoal tirar esse longa do papel. Se não tivéssemos ganho o edital, talvez nem tivéssemos feito o Transversais. Não era algo prioritário para nós, pois tanto eu, quanto o Allan, temos outros projetos para serem feitos. Esse era mais um. Mas a partir do momento em que tentam nos calar à força, fazer esse filme se tornou uma necessidade para nós.
Bom, voltando ao filme: quantas horas ao todo foram filmadas? Como foi a seleção do material que entraria ou não na montagem final?
A gente gravou bastante. Entre 15 e 20 horas. Muita coisa ficou de fora, claro. Na verdade, só para ter uma ideia, cada entrevista com os protagonistas levou duas horas. São cinco. Só aí, temos dez horas. Com os coadjuvantes foram 30 minutos com cada um. Foi um imenso trabalho da Natara Ney, nossa montadora. Essa versão final, que vai aos cinemas, é o corte dez ou onze. O filme foi sendo refeito na ilha de edição o tempo todo. Tivemos várias versões até chegar a uma que agradasse a todos. Eu gosto muito desse corte final.
E os personagens? Como chegaram aos entrevistados que aparecem em cena?
O filme é um desdobramento do Aqueles Dois (2018), meu curta anterior, que é sobre o Caio José e o Kaio Lemos. Quando surgiu a oportunidade de fazer a série, o planejado era cinco episódios, um sobre cada personagem. Então tive que ir atrás de outros três, pois só tínhamos dois. A ideia era reunir pessoas que contemplassem a diversidade dentro da temática da transexualidade. E sempre com um olhar carinhoso, de afeto sobre eles. Não queríamos fazer nem uma série, nem um filme, que falasse mais do mesmo, da marginalização, sobre inclusão social. Queríamos quebrar esse estereótipo. A Samilla foi a primeira, depois dos Caio/Kaio, que trouxe para o projeto. Ela tem uma história muito interessante. A Érikah me impressionou pelo fato de ser professora de duas escolas da rede pública, uma do estado e outra do município, ambas no interior do Ceará. Tinha curiosidade em investigar como era ser uma professora trans da rede pública lidando com adolescentes em localidades tão distantes da capital.
Mas a quinta personagem não é uma pessoa trans. Por qual razão?
Então, tinha a Lara. A protagonista inicial seria ela, a filha, e não a mãe. Naquela época, a menina tinha recém passado pelo processo de expulsão da escola. Foi quando conheci a mãe dela, a Mara. Ao falar com elas sobre o projeto, fiz o convite e a Lara não quis participar. Tava um pouco traumatizada com toda a repercussão do que havia lhe ocorrido. Cheguei a cogitar falar com outras pessoas trans, mas acontece que, no meio dessa história toda, percebi que a grande personagem era a Mara, a mãe. Seria também um contraponto às histórias das pessoas trans. Como uma mãe lida com a situação de ter uma filha trans?
Foi a partir desse episódio que você decidiu agregar outros pais ao roteiro? Por que trazer esse aspecto familiar ao documentário?
Veja bem, a mãe do Kaio Lemos havia concordado em dar uma entrevista. No final, acabou não aceitando falar conosco. Oficialmente, foi por medo da covid. Era uma senhora de mais de 70 anos, com uma série de comorbidades, como iria aceitar que uma equipe de mais de dez pessoas desconhecidas entrasse na casa dela? Então, acabou desistindo. Mas, enfim, a história da relação com a família sempre esteve presente. Era algo recorrente nas falas deles. Quando comecei a fazer as entrevistas prévias, antes de chamar a Mara, percebi que a Samilla falava da relação com os pais, que a Érikah fazia muitas referências à mãe, os Caio/Kaio também. E me dei conta: “talvez seja preciso uma personagem como a Mara, para dar esse contraponto”. Esse outro ponto de vista sobre uma questão que é central do filme.
Por isso que no final, quando as personagens trans se apresentam direto para a câmera, quem fala é a Mara, e não a Lara?
Sim, exatamente. A Mara tem muito mais tempo de tela do que a Lara. A filha topou participar depois, quando já estava em andamento. É mais sobre como transforma a mãe. O que acho legal, e penso que está no filme, é que quando você tem uma adolescente trans, a família inteira é afetada. Isso mudou tanto o pai quanto a mãe dela. Apesar do pai também dar seu depoimento, a protagonista é a mãe, sem dúvida alguma.
Todas as pessoas trans entrevistadas no filme são heterossexuais. Isso foi coincidência ou era a intenção de vocês esse registro?
A orientação sexual deles não era uma questão. Nosso interesse era discutir identidade de gênero. O Kaio Lemos se define como pansexual. O Caio José, a Samilla e a Érikah são heteros. E a Lara não fala sobre a vida sexual dela. Antes das filmagens, ao acertarmos o que podia ou não ser abordado na entrevista, ela foi taxativa: “não falo da minha vida pessoal”. A Lara foi a única a impor esse tipo de limite. Os meninos já estavam acostumados, até pela nossa experiência anterior, e Samilla e Érikha não impuseram nada. Pelo contrário, permitiram acesso a qualquer assunto. A Lara a gente entende, pois tem o fato de ser ainda de menor. Por isso essa combinação prévia. Com ela, cada dia era uma peça de xadrez que se movia. Na véspera das filmagens, anunciou que não queria mais participar, “muita exposição”, afirmou. No dia, já estava pensando diferente. E assim foi o tempo todo.
Transversais, do jeito que está hoje, é como você imaginou? É possível que se desdobre em ainda outros formatos?
Olha, um filme nunca fica como a gente imagina. Tive um professor de cinema que fazia o seguinte exercício: tínhamos que escolher um objeto qualquer e o desenhar olhando para ele, depois olhando para o outro lado, e, por fim, de olhos fechados. Ele dizia que assim era o filme. Na hora que você desenha olhando, é quando está escrevendo o roteiro. Quando o desenha virado para o lado, é durante as filmagens. E quando faz de olhos fechados, é o filme já realizado. E nunca é igual ao primeiro desenho. Transversais é diferente do que havia imaginado, e por uma série de questões. Tanto limitações impostas pela pandemia, quanto de discussões criativas, situações que surgiram no meio do caminho. E ainda sigo com a série. Penso que será um desdobramento interessante. Mas gosto demais do longa. Conta as histórias que tem que contar. Contempla o que era necessário, apesar de muito ter ficado de fora. Mas esses cinco protagonistas estão ali, com suas trajetórias impressionantes.
(Entrevista feita por zoom em fevereiro de 2022)
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