Tralala (Mathieu Amalric) é um homem perdido em Paris: este músico de pouco sucesso está prestes a ser despejado de sua casa, e não tem para onde ir. Quando uma jovem misteriosa (Galatéa Bellugi) aparece diante da estação de trem, com uma mensagem misteriosa (“Sobretudo, não seja você mesmo”) ele decide seguir os passos da moça que desaparece. O rapaz a encontra na cidade de Lourdes, onde é confundido com Pat, jovem da região que desapareceu há 25 anos. Sem perspectivas de vida, Tralala assume a identidade do desconhecido, para a alegria da mãe, do irmão e das ex-namoradas do rapaz. Mas até quando conseguirá manter a farsa?
A comédia musical Tralala (2021) é apresentada no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, com sessões presenciais em 50 cidades brasileiras até o dia 8 de dezembro. O Papo de Cinema conversou com os diretores Arnaud Larrieu e Jean-Marie Larrieu sobre este filme estranho e divertido, que também traz Mélanie Thierry, Maïwenn, Josiane Balasko e Bertrand Belin no elenco:

Jean-Marie Larrieu e Arnaud Larrieu. Foto: © Alexandre Marouzé

Inicialmente, o papel de Tralala foi pensado para o cantor Philippe Katherine. Como Mathieu Amalric acabou interpretando o protagonista?
Jean-Marie Larrieu: Esse é o quinto filme que fazemos com Mathieu Amalric, além disso, somos bons amigos na vida. Sabemos que, em caso de dificuldade, sempre podemos contar com Mathieu, que tem a capacidade de interpretar qualquer papel. Além disso, ele sempre se sai melhor quando o papel não foi escrito para ele. Não acho que conseguiríamos escrever esse personagem tendo Mathieu em mente desde o princípio. Claramente, pensamos em Philippe Katherine, mas isso acontece com frequência no cinema: escrevemos para alguém, e por acaso, não é essa pessoa que acaba interpretando o papel. Foi uma dificuldade quando Philippe não pôde fazer o filme, porque ele realmente é um cantor, e teríamos feito apenas o trabalho de atuação com ele. Quando decidimos por Mathieu, que não é cantor, retrabalhamos o personagem a partir daquilo que ele é capaz de fazer. Por isso, o verdadeiro cantor se torna Bertrand Belin, que interpreta o irmão de Tralala. Ao mesmo tempo, acredito que esta seja uma interpretação excelente de Mathieu, que se dedicou muito. Ele sentiu uma empatia muito grande por este sujeito largado pelas ruas, sem família. Ele teve uma entrega exemplar.

Quando optaram por Mathieu, não pensaram em fazer um musical com músicas pré-gravadas? Sempre quiseram que os atores cantassem de fato diante das câmeras?
Arnaud Larrieu: Nós conseguimos manter Philippe Katherine no projeto enquanto compositor das músicas de Tralala. No começo, ele deveria escrever também os diálogos de Tralala, mas ele ficou muito ocupado, se dedicou a outros projetos. Mesmo assim, ele chegou a nos enviar uma gravação de referência, cantando as canções com sua própria voz. Philippe atinge notas bastante altas, o que Mathieu não consegue fazer. Além disso, nem era ideal que Mathieu tentasse fazer isso: ele precisaria cantar dentro de suas capacidades, para ser suportável para ele. Então percebemos que Mathieu conseguiria cantar, se fizéssemos adaptações de tom. Fizemos gravações em playback por precaução, como uma ferramenta de segurança: durante as filmagens, caso Mathieu estivesse sem voz algum dia, por exemplo, não poderíamos parar as filmagens por dois dias. Felizmente, pudemos gravar tudo com a música ao vivo. O som do filme é realmente o que ele cantava na hora, diante das câmeras. Depois, quando reescutamos a gravação em playback, percebemos que nestes registros ele tentava imitar Philippe Katherine, o que era menos interessante. Felizmente, na hora da filmagem, ele incorporou as canções ao seu estilo.
Jean-Marie Larrieu: Poderíamos tentar alterar esta voz, mas para nós esse era um limita que jamais estaríamos dispostos a aceitar. Nunca colocaria uma voz diferente para Mathieu, com a dublagem a partir de um verdadeiro cantor. Mas o tema do filme não era esse. É uma comédia musical realista, onde as pessoas diante das câmeras são realmente aquelas que cantam. Teria sido uma impostura trocar a voz delas. Por isso pensamos em Katherine a princípio: seria realmente a voz dele cantando, ao vivo.

Existe um caráter fabular importante: quando vemos a foto de Pat na adolescência, e escutamos a voz dele gravada, percebemos que são bem diferentes de Mathieu Amalric.
Jean-Marie Larrieu: É verdade. Essa é quase uma questão moral. A gente ficou em dúvida: seria melhor colocar uma foto de Mathieu jovem? Mais isso seria uma enganação, porque o personagem não é ele. Mesmo assim, acredito que a foto que mostramos poderia ser Mathieu muito mais jovem. Por acaso, aquela é uma fotografia do nosso assistente de câmera! Com a barba, poderia ser ele. Quanto à voz de Pat, que escutamos na casa noturna, pedimos ao filho de Mathieu para gravar esse registro. Então, apesar de serem tons diferentes, existe uma clara ligação entre eles. Quisemos manter uma pequena relação ali.
Arnaud Larrieu: É verdade que as fotos nos enganam. Mas quando reencontramos pessoas desaparecidas, 25 anos depois, se não guardamos fotos deles antes, podemos descobrir um rosto totalmente diferente. Muita coisa acontece a uma pessoa neste período. Se tivéssemos colocado uma foto de Mathieu, o que não quisemos fazer, os significados mudariam na cabeça do espectador. Seria possível pensar que Pat é realmente ele, mas Tralala não se lembra mais do passado. Quisemos evitar esta leitura. 

A religiosidade em Lourdes também é importante para a magia: o retorno de Pat é visto como um milagre, e as pessoas acreditam na volta deste homem baseadas na fé, mais do que nos fatos.
Jean-Marie Larrieu: A anedota de uma pessoa confundida com outra foi tirada de um episódio real na vida de Jim Harrison, escritor americano. Ele conta que, na viagem a uma cidadezinha, entrou num bar e todos começaram a dizer que ele era, na verdade, o pequeno John que tinha partido para a guerra muitos anos atrás. Ele repetia que não poderia ser ele, nem as idades coincidiam. Mas as pessoas insistiam que era ele. A história nasceu deste momento, que não se passou numa cidade religiosa. Mas é verdade que Lourdes tem este aspecto de milagre, que acolhe muito bem uma história como essa.
Arnaud Larrieu: Nós somos de Lourdes, e sabemos que nem todos os habitantes da cidade são muito religiosos. Mesmo assim, existe uma aura em torno da história da pequena Bernardette, a garotinha de 14 anos que marcou a todos. Por causa dela, existe um clima de que coisas incríveis podem acontecer, religiosas ou não. Talvez o retorno de Pat tivesse menos sentido caso acontecesse em outro lugar.
Jean-Marie Larrieu: Acredito que só percebemos isso depois, mas o que significa aplicar temas tipicamente religiosos num contexto laico? Se tiramos o cristianismo de cena, o que significa um milagre, uma ressurreição, as aparições? Estas noções existem na vida, antes da religião, e fora dela. O fato de estarmos em Lourdes favorece a conexão com a religião, mas não abordamos o tema de maneira religiosa, longe disso. 

No filme, os personagens que interpretam outros personagens. Como trabalharam com os atores as mudanças de identidade de Tralala e da garotinha, que passa de uma fada a interesse amoroso, e finalmente à figura de filha?
Jean-Marie Larrieu: Quase nunca ensaiamos com os atores, todo o trabalho ocorre durante as filmagens. O que foi especial, neste caso, foram as músicas. Como tínhamos o playback antes, isso ajudava a entrar no personagem. No caso da garota, isso veio da escolha do elenco: fizemos o teste com várias meninas, e quando encontramos o teste de Galatéa, percebemos uma aura de alguém que já tinha visto o outro lado. Ela ficou perturbada com esse comentário nosso, e perguntou: “Mas como assim, do outro lado? Tenho cara de alguém que já morreu?”. Mas não, claro! Os figurinos também ajudavam bastante. Quisemos brincar com a representação da Virgem Maria, através da cor azul, do halo sobre a cabeça em frente à Estação Montparnasse. No final, ela se veste como uma garotinha comum.
Arnaud Larrieu: Sobre Tralala, preciso admitir que não ficamos muito contentes com a segunda camisa dele – Tralala tem apenas duas camisas, o filme inteiro. A mãe escolhe essa camisa, então a decisão vem dela. Era preciso que fosse algo diferente, que ele não teria escolhido sozinho.
Jean-Marie Larrieu: Mas nós adoramos a primeira camisa, que se encaixa perfeitamente nele! A diretora de arte conseguiu construir a ideia de uma pessoa que já foi extravagante no passado, e hoje não é mais. Ele veste uma calça que brilha, por exemplo. Nós trabalhamos muito com o que chamamos de dramaturgia do plano de trabalho. Nem sempre conseguimos filmar a história em ordem, mas neste caso, começamos de fato por Paris. Essa escolha não foi por acaso: deste modo, pudemos começar do zero com Mathieu. Filmamos muito rápido: as cenas em Paris foram feitas em dois dias, apenas. Mesmo fora dessa cidade, dizíamos a Mathieu: “Pense naqueles dias em Paris. Aquele é o Tralala”. Inventamos com ele a relação que ele teria com outros personagens.
Arnaud Larrieu: Mathieu tinha uma tendência a se “Patizar” de vez em quando, porque ele queria ter uma relação real com a filha, a mãe. Mas nós insistíamos: “Nunca se esqueça que você é Tralala. Coloque na interpretação de Pat os traços de Tralala”.

Tralala mostra as pessoas usando máscaras, mas a Covid nunca se torna um tema no filme. Por que decidiram manter a referência à pandemia?
Arnaud Larrieu:
Isso diz respeito à premissa do projeto: quisemos fazer uma comédia musical em relação direta com o real. Por isso, diante da Estação Montparnasse, por exemplo, era preciso ter uma aparência de documentário. As pessoas saíam da estação com suas máscaras, e nunca pensamos: “Que horror. Vamos ter que filmar numa pequena estação do interior para evitar isso”. Decidimos abraçar o real, justamente por ser uma comédia musical.
Jean-Marie Larrieu: Havia um desejo que nos define como cineastas: acreditamos que o momento que vivemos hoje é tão inacreditável que evitar essa realidade nos pareceria tão falso quanto colocar uma voz diferente em Mathieu. Pensamos: talvez as pessoas falem a respeito daqui a cinquenta, cem anos, mas eu me orgulho de termos filmado o que realmente acontece conosco neste momento. Talvez seja estilizado, claro, mas não quisemos evitar as máscaras.
Arnaud Larrieu: Em paralelo, isso não poderia se tornar o verdadeiro tema do filme. A exemplo de Tralala, era preciso que a situação da pandemia aparecesse com certa desenvoltura. Quando filmamos, era o início da pandemia, e ninguém tinha noção da gravidade que isso adquiriria mais tarde.
Jean-Marie Larrieu: O filme não deixa muito clara a época em que se passa. Existem poucos celulares, pouca tecnologia. O que marca o tempo são as máscaras! Essa acaba sendo a única referência temporal. A máscara é um signo que remete à realidade, e o filme precisaria acolhê-la. Seria loucura ignorá-la.

Gosto do mantra “Sobretudo, não seja você mesmo”. Os ensinamentos costumam ser pesados e solenes, mas este quebra as expectativas. O que a frase significa para vocês?
Arnaud Larrieu: Existe esse caráter de transgressão, porque ela rompe com a frase habitual, “Seja você mesmo”. Isso nos tira do conforto e do esperado.
Jean-Marie Larrieu: Esse é um verso escrito por Philippe Katherine. A função era colocá-la na boca da Virgem. Era divertido que ela tivesse apenas uma frase a dizer, e que fosse esta frase enigmática.
Arnaud Larrieu: Mas existe essa ideia de que Tralala gira em falso. No começo do filme ele está sozinho, e canta para si mesmo. Em casa, o espelho é um desenho dele! “Não seja você mesmo” significa sair do círculo da identidade.
Jean-Marie Larrieu: Philippe Katherine diz coisas que têm aparência de brincadeira, mas no fundo, isso reflete a noção contemporânea de identidade. Essa frase traz certa leveza para todo mundo, o que é ótimo, porque as discussões sobre identidade costumam ser muito pesadas. Além disso, o espectador não espera uma frase como essa. A ideia é lançar o enigma e deixar o espectador pensando. Depois, o roteiro oferece a Tralala a possibilidade literal de se tornar outra pessoa.
Arnaud Larrieu: Quando Tralala tem alguma dúvida, essa frase volta à mente, encorajando-o a continuar a ser Pat até o final. O suspense é esse: até quando ele vai conseguir sustentar a mentira?

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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