No 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, o Brasil teve nada menos que dezenove filmes competindo nas mais diversas categorias. Um deles foi selecionado na competição principal, disputando o Urso de Ouro com alguns dos diretores mais consagrados do mundo: Todos os Mortos (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra, com produção de Sara Silveira.

A história gira em torno da sociedade brasileira no fim do século XIX, quando a cidade de São Paulo crescia rapidamente, acomodando-se ao fim da escravidão e à proclamação da República. Nesta fase de transição, duas famílias são comandadas por mulheres: um núcleo abastado, embora em decadência devido à crise do café, e o núcleo dos antigos escravos que costumavam servir aos barões. Estes personagens são conectados pelos fantasmas que perambulam pela casa. O Papo de Cinema conversou com os cineastas sobre o projeto:

 

Equipe de Todos os Mortos no Festival de Berlim. Foto: Berlinale / Divulgação

 

O filme lida com festas populares e movimentos políticos que tomaram as ruas, mas os personagens permanecem sempre dentro de casa. Por quê?
Marco Dutra: Na gênese do projeto, o espaço doméstico já era bem importante. Nas primeiras versões do roteiro, essa era uma história de salas, quartos e cozinhas. Já exploramos este universo nos outros filmes que fizemos. Todos os Mortos tinha o diferencial de ser de época, mas mantivemos o interesse pela vida cotidiana e pelo olhar à intimidade. Ao mesmo tempo, a gente queria desde o início valorizar a presença da cidade, o que também era fundamental em O Que se Move (2013) e As Boas Maneiras (2017). Aqui, a ideia era sobrepor tempos. Não era muito claro no início como faríamos isso, mas depois entendemos a necessidade de revelar aos poucos o que existe fora do espaço doméstico, seja pela imagem, seja pelo som – e frequentemente, por um ou outro separadamente. Aos poucos, entendemos o papel da cidade ao redor deles.

Caetano Gotardo: Também quisemos entender como a vida da sociedade estava entranhada nos espaços mais íntimos. O Salloma Salomão, compositor da trilha sonora e consultor de roteiro e montagem, comentou a importância de entrar na casa das pessoas, o que nos permite ver como os comportamentos sociais ligados a raça e classe se configuram nas relações cotidianas. Muito do nosso comportamento íntimo reflete quem somos socialmente, ou como a sociedade da nossa época se organiza, e se impõe sobre as nossas vidas. A casa se torna um microcosmo, cada família é invadida pelas questões existentes lá fora.

 

 

Por que decidiram multiplicar os pontos de vista em estrutura coral, ao invés de adotarem um protagonista único?
Marco Dutra: Esse filme nasceu panorâmico. Começamos a pesquisar sobre as famílias e percebemos que o projeto só funcionaria caso se aprofundasse bastante em cada personagem. Investigamos até descobrir de onde vinha cada um, qual era a fé, em que bairro viviam. Chegando nos detalhes, os personagens passam a nos dominar, o que traz uma sensação muito boa de estar abrindo as portas certas. Aí não é possível voltar atrás: quando as pessoas se revelam na contradição, na complexidade, isso contamina o filme e não dá mais para escolher apenas um ponto de vista. A gente sempre soube que teriam as quatro mulheres e a criança como centro, mas deixamos outros personagens crescerem – a vizinha, o sobrinho, a Carolina e as pessoas da fazenda, a menina libanesa, as alunas da escola. Eles têm nomes, têm personalidades. Quando montamos o primeiro corte, chegamos a algo imenso, e nos deparamos com uma dificuldade de finalizar este processo. Mas nenhum personagem caiu na montagem. O dono da mercearia, por exemplo, teve seu papel reduzido, porém ele continua lá, ele existe. A ideia era não retirar ninguém, mas buscar uma essência, senão seria impossível. A intenção era preservar o caráter panorâmico. Falamos muito durante o processo que seria fundamental manter vários pontos de vista. Estamos muito acostumados à versão oficial das coisas, inclusive da História. Ter personagens com diferentes ângulos, sem dizer qual é o bom nem o mau, o certo nem o errado, deixando cada um se expressar em sua complexidade, era um dos propósitos do filme.

Caetano Gotardo: Muito do que a gente tinha vontade de explorar, os temas que nos interessavam, tinham a ver com diferentes relações entre as pessoas. As relações entre eles pautavam mais a narrativa do que a trajetória individual de cada uma delas, embora se tenha pensado muito nos percursos individuais na hora de compor o roteiro. O centro dramático eram os relacionamentos quando São Paulo explode e se torna a maior cidade do país em pouquíssimo tempo. Isso ocorre de maneira desorganizada, o que deu origem à cidade fervilhante com muita gente de origens distintas vivendo num espaço comum. Entender essa dinâmica era fundamental. Mais importante do que selecionar, privilegiar um ponto de vista, era encontrar um fluxo emocional e dramatúrgico que nos conduzisse de conflito em conflito, assumindo que algumas questões seriam apenas pinceladas. Existe uma imigrante libanesa que chega na trama, mas não vamos abordar a questão da imigração – este não é um tema central no filme. Mesmo assim, esse elemento também existe: uma garota representa a única aluna negra da classe, por exemplo. Não precisamos dar conta de nos focar em cada um desses aspectos, porque isso decorre da experiência de viver em São Paulo até hoje: você passeia de grupo em grupo, com diversas coisas acontecendo e ressoando em outros círculos. Os conflitos se retroalimentam, e afetam os conflitos principais. Falamos muito de rios no filme, e acho que adotamos essa característica: trabalhamos com rios e também com seus afluentes. Nenhuma questão é isolada: cada problema social é alimentado e afetado por outros. Durante a montagem, testamos uma versão em que a escola caía por completo, e talvez isso facilitasse um pouco. Mas a ideia não era facilitar, apenas encontrar um equilíbrio em que todos esses espaços tivessem seu interesse, sem que a linha narrativa se perdesse ali no meio. Foi um trabalho muito fino de montagem para perceber o peso e o balanço de cada um desses aspectos.

Marco Dutra: É sempre uma balança. A gente sabe que colocar uma segunda cena da escola interrompe um fluxo do que acontece, dentro daquele momento da história, na casa da Soares. Vale a pena essa digressão? Discutimos longamente sobre isso e chegamos à conclusão de que valia a pena sim. No fundo, não se tratava de uma digressão, era uma peça acoplada ali. Nós contamos com um espectador ativo que possa desacoplar e remontar as coisas. É dessa maneira que nós dois interagimos com os filmes, e esperamos que as pessoas façam o exercício de interagir com essa proposta de fragmentos – mesmo que seja a proposta mais estranha, diferente do fluxo narrativo de um protagonista único.

 

 

Vocês retratam uma cultura e uma religiosidade ao mesmo tempo brasileira e muito diferente do conhecimento popular. Como enfrentaram esse desafio de cantos e preces em língua estrangeira, por exemplo?
Caetano Gotardo: Isso foi muito forte para a gente durante o processo. Tinha uma questão da fé no filme desde as primeiras versões do roteiro. Mas quando começamos a desenvolver mais profundamente a personagem da Iná (Mawusi Tulani), isso se esclareceu. Existe a Maria (Clarissa Kiste), que é freira, mas todos lidamos com o catolicismo como se soubéssemos exatamente como ele é. Mesmo que nenhum de nós tenha um profundo conhecimento do catolicismo, temos alguma forma de conhecimento compartilhado. Eu estudei em escola católica, ainda que não seja praticante. O catolicismo está presente por todos os lados, os espaços estão tomados por crucifixos. Criamos esta freira sem nos aprofundar muito na temática da fé, mas quando investigamos a crença da Iná também, a questão se tornou mais importante. A fé da Iná é algo com que nós dois tínhamos menos contato, e dentro da sociedade brasileira, essa é uma manifestação religiosa pouco conhecida pelos não praticantes. Foi um processo de pesquisa muito rico, com ajuda da Goli Guerreiro, uma historiadora baiana que leu várias versões do roteiro e fez diversos comentários sobre questões religiosas e as relações em modo geral. Nós tínhamos nos aproximado da Iná enquanto praticante do candomblé, mas em determinado momento, a Goli sugeriu que a Iná seria do candomblé de Angola. Pesquisamos e nos interessamos bastante pelo tema. Chamamos então uma sacerdotisa mameto, do candomblé de Angola. Ela nos disse muito sobre as práticas e acompanhou as filmagens, além de fazer um trabalho profundo com a Mawusi, nossa atriz. A Mawusi é ligada a uma religião de matriz africana, mas não o candomblé de Angola. Nós nos alimentamos disso, pensando nessas diferenças que nunca são comentadas: fala-se muito pouco sobre as diferentes linhas dentro do candomblé. Isso é pouco explorado e representado. Quisemos então pensar a respeito e trazer isso para o filme, colocando em relação com o catolicismo. A partir da Iná, a fé da Maria também se aprofundou. Passamos a pesquisar o catolicismo também, para além da questão mais óbvia do imaginário coletivo.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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