Belisário Franca é carioca, nascido na Cidade Maravilhosa no ano de 1960. Vencedor do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2017 de Melhor Documentário, com Menino 23, ele lança agora outro longa-metragem em que revolve episódios pouco difundidos de nossa História. Soldados do Araguaia parte de memórias e impressões de recrutas do Exército que participaram da chamada Guerrilha do Araguaia (1967-1974), em plena vigência da Ditadura Civil-Militar. Os homens convocados junto às comunidades ribeirinhas e rurais relembram momentos tensos, como as frequentes torturas que marcaram seu treinamento apressado e desumano, além das barbaridades perpetradas pelos homens fardados, então numa cruzada anticomunista nas terras paraenses. Belisário nos atendeu gentilmente para esta conversa por telefone, na expectativa do lançamento de seu mais novo filme nos cinemas. Confira o Papo de Cinema com o diretor de Soldados do Araguaia.

 

Como você tomou conhecimento da pesquisa de Ismael Machado?
Conheci o Ismael há quatro anos, num processo de pesquisa para outro projeto. Logo nos tornamos amigos. Na época, estava finalizando o Menino 23, que fiz questão de mostrar a ele antes do lançamento. O Ismael é uma pessoa bastante ativa nessa área investigativa, de muito sucesso no jornalismo. Certo dia, ele me apresentou a história que deu base para Soldados do Araguaia, inclusive ciente das dificuldades que enfrentaríamos para fazer esse filme.

 

Os personagens que você registra já estavam na pesquisa dele?
Uma parte sim. O Raimundo, por exemplo, tem uma associação do ex-soldados do Araguaia. Quando começamos a discutir, precisávamos de diversidade nos depoimentos. Fizemos escolhas, tivemos inclusive testemunhos que descartamos e outros que não conseguimos realizar, infelizmente. Curiosamente, a exibição prévia realizada em Marabá causou tamanha comoção que alguns veteranos, avessos a se pronunciar para as câmeras, começaram a expor suas experiências. Foi uma verdadeira catarse. Portanto, os que antes escolheram o silêncio, resolveram falar, motivados pelo documentário.

 

Você pensou em ouvir alguém do alto comando do Exército sobre a Guerrilha do Araguaia?
Queríamos esse recorte pela voz dos soldados de baixa patente. As características dos oito depoentes são as mesmas. Todos são oriundos de comunidades da região, tiveram uma vida pregressa ligada aos afazeres da terra, seja agricultura familiar ou outra atividade próxima, e são provenientes de famílias muito modestas. De repente eles se viram naquela situação. O caso deles mostra o horror surgido dentro da própria instituição. Fizemos realmente uma escolha, até porque a produção de amnésia e silenciamento partiu do Exército, especificamente no que tange à Guerrilha do Araguaia. Essa foi uma operação estratégica. O que o Exército fez lá foi duríssimo, um verdadeiro massacre, não apenas dos ativistas, mas também da população que os suportou. Então, foi uma escolha não ouvir o Exército, que durante muito tempo preferiu silenciar-se, de fato.

 

Qual o lugar da plasticidade nos seus filmes?
Estamos fazendo cinema. O fazer cinema não é a produção de um artigo, de um ensaio ou de um livro. O filme tem de se valer das ferramentas possíveis, tanto áudio quanto visuais. Essas histórias registradas já são suficientemente duras, então proponho uma camada poética, cinematográfica, não com o intuito de aliviar, mas para capturar organicamente a atenção. O esforço foi trazer o espectador para dentro dessa trama importante de ser conferida e sentida. A trilha adequada, a montagem, o artesanato de uma série de minucias, tudo isso faz você seguir dentro daquele universo. Acho difícil separar esses elementos do storytelling. É um custo para trazer à tona a verdade do cinema, para que todos percebam seu impacto.

Nos bastidores do documentário “Amazônia Eterna”

Menino 23 e agora Soldados do Araguaia revolvem episódios históricos pouco difundidos/estudados. Atualmente, essa é sua maior motivação enquanto documentarista?
É esse silenciamento. Somos uma nação que prima pela negação, que prefere calar aquilo que não gosta em si. Seja a elite ligada fortemente a ideologias totalitárias, ou, no caso da Ditadura Civil-Militar, a utilização do terror de estado para controlar o país. Chile e Argentina, nossos vizinhos, tiveram ampla discussão a respeito de suas ditaduras, por meio de filmes, livros, julgamentos públicos, e aqui no Brasil passamos rápido demais à democracia, sem discutir devidamente o que aconteceu. Recentemente, as comissões da verdade fizeram um trabalho importante, que, aliás, vive um desmonte. Estamos em vias de produzir novos silenciamentos. Me interessa discutir isso. Meu próximo documentário aborda o sistema prisional, outro universo silenciado, pois a sociedade não quer falar sobre ele.

 

Como você percebe o crescimento de um clamor pela volta dos militares ao poder, bem como a anacrônica paranoia anticomunista na boca de algumas figuras públicas?
Para mim, o silenciamento e a negação estão diretamente ligados a isso. Quando você investiga, as histórias aparecem e elas são nada louváveis. Apenas como exemplo, o Rio está sobre intervenção militar e não foi possível proteger a Marielle (vereadora carioca recentemente executada na cidade). É uma proteção seletiva? O próprio general Villas Bôas, o interventor designado em âmbito federal, disse que uma semana depois do exército desocupar a favela da Maré, o status quo foi reestabelecido. Aliás, mesma Maré de onde veio a Marielle. Tal intervenção militar não é efetiva. Ela é muito questionável em vários aspectos. Não é essa a missão das Forças Armadas. Em novembro do ano passado, numa operação em São Gonçalo (bairro do Rio), realizada pela policia em conjunto com o Exército, 8 “bandidos” (aspas de Belisário) foram mortos, todos com tiros por trás, ou seja, claramente executados. Os soldados estão sendo investigados internamente. Ninguém sabe de algo, e já estamos em março. Vivemos um momento muito delicado e preocupante. É um instante de muita sensibilidade e fragilidade.

(Entrevista concedida por telefone, no Rio de Janeiro, em março de 2018)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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