Selvagem (2021) chegou recentemente aos cinemas brasileiros discutindo questões muito importantes a partir da luta estudantil por melhoras na educação do Brasil. A inspiração foi o movimento de ocupações secundaristas que marcou o ano de 2015, resposta a planos arbitrários de reorganização do ensino público, cujos efeitos mais imediatos seriam a precarização ainda maior de nossas escolas. E uma parte muito importante do filme é seu elenco, por isso achamos importante conversar com Igor Veloso, produtor do elenco, boa parte responsável pela paisagem humana diversa e representativa que vemos no filme. No entanto, Igor não é “apenas” o produtor, tendo em vista que fez uma pequena participação como ator e é uma das peças fundamentais para a distribuição que vem sendo feita pela própria equipe, na guerrilha, e que inclui escolas e equipamentos culturais para além da restrição da sala de cinema. Conversamos por telefone com Igor Veloso e o resultado de mais este Papo de Cinema exclusivo você confere agora.
Qual o principal desafio para escalar o elenco do filme, que é jovem e numeroso?
Foi realmente um desafio muito grande. Ao fazer a produção do elenco, trouxe para o Diego (diretor do filme) muito isso da necessidade da diversidade. Sou periférico, de São João de Meriti (município da baixada fluminense), e desde pequeno meu sonho era ser ator. Moramos na comunidade da Maré até meus cinco anos de idade. E quando fui para São João, acabei ficando muito longe da cultura. Somente fui pisar num teatro com 18 anos. Quando fiz a produção, tinha em mente a necessidade de pensar qual seria a cara do filme, principalmente porque ele falava de ocupações em escolas públicas. Nós próprios estudamos em escola pública. E essa cara é majoritariamente negra, assim como o Brasil é majoritariamente negro. Infelizmente, isso não é tão representado no cinema. Então, era preciso ter atores que não estivessem nos centro das capitais. Me mudei para São Paulo e fiquei selecionado atores em companhias de teatro que não fossem centrais. A Fran é uma atriz periférica. Há ali vários atores da periferia de teatro. Assisti a peças de jovens e fui tendo contato com eles. Minha intenção era trazer pessoas que não estivessem já no circuito do cinema. Encontrei vários atores no slam. A minha intenção era pescar essas pérolas que são facilmente escondidas pela cidade. Segui pensando nisso. Meu sonho era ser ator e nunca um produtor foi a São João para ver meu trabalho. Então, agora que eu tinha a oportunidade de selecionar o elenco, queria buscar justamente essas pessoas.
E era preciso dar conta da diversidade dessa paisagem humana… Aliás, para você, por que é tão importante a diversidade na representação?
Queria que o filme tivesse a cara do Brasil. Há também atores de vários estados, ou seja, também tem nisso uma representatividade. Nossa cultura no geral é centralizada em Rio e São Paulo. Somos um país que, além de colonizado, foi escravocrata. Precisamos refletir sobre isso. Quando pensamos na desigualdade social, no período terrível da escravidão, que reverbera infelizmente até hoje, todo esse processo é uma construção dos imaginários sociais que vão se perpetuando. A cultura é fundamental para construir a autoestima de um povo. Quando começamos a ver a história do nosso país, há um plano de embranquecimento. Quando os governos trouxeram os europeus, era parte desse plano de embranquecimento, e isso passa pela destruição de imaginários divergentes desse padrão almejado. Fiquei muito chocado quando fui descobrindo isso. Vemos um filme e nem sempre pensamos nessas coisas. Quando alguém fala que representatividade não é importante, me pergunto: como não? Se somos 55% de pretos e indígenas, porque essas parcelas não são representadas? Por que elas sempre são vistas como inferiores? Na verdade, há um roubo de subjetividades de corpos não brancos. A escravização apenas foi possível porque essas pessoas foram tidas como não humanas, inferiorizadas. Como diz Ângela Davis, não basta não ser racista, temos de ser antirracistas. Foi muito bacana ter a oportunidade de escalar esse elenco que continha jovens no seu primeiro filme, alguns com uma estrada maior e atores com uma tarimba incrível. Ter esse elenco no filme foi uma honra.
O filme está sendo distribuído num esquema de guerrilha, com vocês indo a muitas sessões e experimentando a recepção do público. Como tem sido esse processo?
Não tínhamos acesso à distribuição tradicional, uma área muito difícil no Brasil. Sou mochileiro, já passei por 13 países da América Latina ao longo da minha vida, e nessas viagens fui pensando como estamos de costas para a América latina. Quando pensamos em lançar, traçamos estratégias. Pensamos que ele deveria chegar ao povo. As ocupações secundaristas aconteceram em 2015 e até hoje muitas pessoas não sabem delas, alguns pais não entenderam o que aconteceu, até porque a imprensa criminalizou os movimentos. Pensamos em montar um percurso para que o filme fundamentalmente chegasse às pessoas. Foi aí que montamos a estratégia de fazer várias turnês pela América Latina. Fizemos exibição no Chile, onde também houve uma movimentação linda de estudantes. Fizemos exibições no Uruguai, no Paraguai, na Colômbia, em escolas e outros aparelhos culturais em periferias. E aqui no Brasil estamos fazendo isso de modo parecido. Fizemos uma turnê pelo Nordeste, foram 13 dias incríveis. Como não tínhamos verba, várias pessoas nos receberam nas suas casas, pegamos carona, ônibus. Fizemos exibições em ocupações por moradia na Bahia. Em Pernambuco tivemos projeções em pré-vestibulares comunitários. E todas essas sessões aconteceram com debates. Tivemos tantos retornos bonitos. E muita gente que via os movimentos com o olhar viciado pelo viés da imprensa hegemônica, acabou tendo contato com a versão dos alunos sobre ocupações.
Você acha que é preciso também pensar novos modelos de distribuição, especialmente para filmes independentes como Selvagem?
Cara, acredito que sim. É importante repensar distribuição. Escutamos muito as pessoas falando que não gostam de filme brasileiro, especialmente gente mais velha. Ficou muito marcado que palavrão, sexo e violência eram as tônicas do cinema brasileiro. E isso é uma grande inverdade. Nas últimas duas décadas tivemos um bom investimento e isso foi trazendo a arte do Brasil para outro lugar. Sou um exemplo disso. Sou da periferia, ninguém da minha família estava inserido no núcleo artístico. Nesse período, vários brasileiros tiveram a oportunidade de ir à primeira vez a um teatro, por exemplo. Acho que esse é um ótimo momento para pensarmos em formação de plateia, contando principalmente histórias que não são baseadas em estigmas, Quando incluímos escolas públicas, movimentos sociais, exibições gratuitas nas praças, acreditamos nesses espaços como fundamentais. É difícil conseguir meios para despertar a curiosidade das pessoas, principalmente para competir com a máquina do cinema estadunidense.
No cinema independente é difícil ter apenas uma função. Geralmente é preciso acumular tarefas. Como você enxerga essa realidade que é muito diferente da hollywoodiana, por exemplo?
Enxergo essa realidade duríssima. É importante não perdermos de vista que estamos num país escravocrata. Rever isso é importante. Sou do teatro e nele todo mundo acumula funções. Trago isso comigo. Por um lado, é ótimo. Essa experiência múltipla no filme é ótima. Desde a época do roteiro, em 2018, fiz apontamentos, pensei junto a distribuição. Mas, por outro lado, é importante não romantizar o acumulo de funções. A necessidade de pagar as contas nem sempre permite que as pessoas permaneçam trabalhando nas artes. E nem todo mundo pode acumular funções. Principalmente para o ator, acho bom experimentar todos os lugares em prol de seu crescimento. Mas é importante trazer à tona essa discussão. O trabalho precisa ser remunerado, inclusive equivalentemente às funções que as pessoas desempenham. É bom ter isso em vista para permitirmos que os artistas sigam experimentando.
Você também faz uma participação como ator, vivendo um dos agentes do governo. Como foi gravar aquela cena que é cheia de tensão com os alunos?
Foi muito bacana. Primeiro, por estar num lugar completamente diferente do meu. Sou defensor da educação e no filme interpretei um representante do governo que enxerga os estudantes como baderneiros. Entrar nesse papel foi um processo muito bacana. Foi um lugar novo para mim. Inclusive porque logo depois dos nossos personagens a polícia entra, ou seja, eles são emissários. Embora a participação seja pequena, foi um desafio, especialmente por isso de estar deslocado da minha vivência. Meu personagem é aquele do “faço porque me mandaram”.
Como você tem visto o atual panorama do cinema brasileiro sob os desmandos de um governo federal que parece ir na contramão do fomento da nossa indústria?
É muito triste. É ali onde você vê a camada mais subserviente do governo. A coisa mais cretina desse governo é que ele não está a serviço do Brasil, mas dos Estados Unidos. Um governo que desmonta a cultura, que tem à frente da pasta um homem como Mário Frias, que torce para a Lei Paulo Gustavo dar errado. Eles não estão torcendo para o Brasil. Estão a serviço de um projeto estrangeiro para destruir a gente. O que sobra são as plataformas de streaming. Penso sempre dentro de uma perspectiva histórica. Estamos num processo de crescimento. Temos o Doutor Gama, Um Dia com Jerusa, O Novelo, O Pai da Rita. Estamos num retrocesso grande, mas não podemos perder de vista, até para não ficarmos parados, que esse movimento reacionário é uma resposta aos nossos avanços. Há 20 anos não tínhamos produções com corpos não brancos sendo humanizados. Não tínhamos tantos filmes com essa intenção. E hoje temos vários artistas ascendentes fazendo esse trabalho. Penso que realmente é lugar de luta e de pensar que precisamos continuar exigindo. Vamos continuar fazendo arte, independentemente desse governo querer ou não. É importante perceber que temos essa produção e que continuaremos. O progressismo, o antirracismo e o anti-colonialismo vão vencer. Tenho esperança. Os reacionários tentam nos invisibilizar, mas estamos aqui para resistir.
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