Nesta quinta-feira, 4, representantes da APACI (Associação Paulista de Cineastas) e outros profissionais do audiovisual brasileiro se reuniram em frente à Cinemateca Brasileira, na Vila Mariana, em São Paulo. Vestidos com máscaras e respeitando o isolamento social, protestaram contra o descaso em que se encontra a maior instituição de preservação do audiovisual no país.

Além de sofrer com a demissão de funcionários e o atraso no pagamento dos salários, a Cinemateca corre o risco de perder o importante acervo de películas, caso a energia elétrica seja cortada e os filmes não possam permanecer na refrigeração adequada. O Papo de Cinema conversou com Roberto Gervitz, cineasta e um dos organizadores do evento, antes da manifestação SOS Cinemateca, para compreender melhor o cenário caótico que já chama a atenção do mundo inteiro:

 

Roberto Gervitz na manifestação SOS Cinemateca

 

De que maneira você participou da organização dessas manifestações?
O Ícaro Martins e eu pertencemos à APACI – Associação Paulista de Cineastas, que existe desde os anos 1970, tendo passado por diversas diretoras. Vários grupos de trabalho são criados dentro da associação, de acordo com as questões distintas às quais a associação precisa responder. Cerca de dois anos atrás, formou-se o Grupo de Trabalho Cinemateca, formado atualmente por seis pessoas. Este grupo surge em função da percepção de que a situação estava muito grave, há bastante tempo. A nossa ideia era tentar estabelecer uma interlocução com a Cinemateca, que veio perdendo a comunicação com o meio cinematográfico. Mudaram o diretor geral, mudaram de Instituição Governamental para Organização Social, sem contar com associações e sindicatos da comunidade cinematográfica brasileira.
A gente sentiu que a Cinemateca enfrentava problemas gravíssimos, e hoje chega no limite. Além disso, a classe cinematográfica não conseguia fazer nada pela Cinemateca. Muitos desses problemas vêm da falta de diálogo. Começamos a falar com sucessivos supervisores e diretores da Cinemateca, que ficavam por pouco tempo no cargo. Muitos deles eram incompetentes, e foram colocados lá por questões políticas, sem terem a menor ideia do que significa uma cinemateca. Nós tentamos várias vezes restaurar o diálogo que já existiu antes. A Cinemateca nasceu através dos cineastas de São Paulo. É certo que o Paulo Emílio Salles Gomes foi fundamental nisso, mas os filmes pertences ao acervo da Cinemateca são dos cineastas brasileiros. Existe um acervo riquíssimo de televisão, e um acervo precioso de nitrato do começo do século passado.
A Cinemateca é intimamente ligada à atividade cinematográfica. Nós mantivemos contato com funcionários e pessoas próximas, e ouvimos horrores sobre a situação lá dentro. Tivemos uma grande reunião em setembro do ano passado com o apoio de Cacá Diegues, Fernando Meirelles e muitos outros cineastas, além de todas as entidades que já apoiam esse documento. Entregamos ao Roberto Barbeiro alguns dos itens e parágrafos que estão presentes nesse manifesto, mas nada aconteceu. No final do ano, o governo rompe com a OS designada para gerir a Cinemateca através do Ministro da Educação – se é que podemos chamá-lo de ministro. A ACERP (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto) decidiu ficar, porque o contrato que envolvia a TV Escola e a Cinemateca ainda estava válido. A associação, inclusive, gastou cerca de R$10 milhões do dinheiro próprio para fazer frente a estas dificuldades. A Cinemateca está sem pagar as contas, numa situação de penúria inédita. Ela já enfrentou muitas crises, mas este abandono total, este descaso e esta vontade do governo em atacar um órgão que cuida da memória audiovisual é assustadora.

 

 

O documento ressalta a necessidade de refrigeração das películas, e a dificuldade em pagar a conta de eletricidade, por exemplo.
Isso é trágico. Foi isso que nos colocou em estado de emergência total. O Carlos Calil preparou um documento que recebeu a adesão de 13 mil assinantes no mundo inteiro. Não são entidades, e sim pessoas físicas. O mundo inteiro sabe da vergonha que o Brasil está passando. Acredito que este governo nem saiba o que é uma cinemateca, ele não tem a menor ideia da importância dela. Existe um risco do corte de energia pela ENEL, e a Cinemateca precisa de espaços com temperatura controlada para a manutenção dos negativos. É isso que garante a sobrevida deles. Se desligarem a climatização, o esquentamento súbito vai gerar uma grande umidade, e os filmes dentro das latas vão sofrer o que se chama de “síndrome do vinagre” – eles vão apodrecer. É um nível de prejuízo cultural e financeiro incalculável. Apesar de estarmos numa pandemia, estimamos que a situação de emergência total da Cinemateca justificava a manifestação presencial. Todos irão com máscaras, e ficarão em distância segura.

Por que era indispensável realizar o ato presencial? Como enxerga as ferramentas de pressão pela Internet?
Já fizemos isso muitas vezes. Entregamos abaixo assinado, vários documentos. Agora, a situação chegou ao limite. Não adianta entregar mais um documento para parar na mão de um burocrata que vai levar duas ou três semanas para resolver o problema. A coisa precisa ser resolvida agora. O governo já declarou que pretende tirar a ACERP da Cinemateca, mas não se tira uma OS de um dia para a noite. É uma mudança complicadíssima. Seria preciso fazer um aditivo ao contrato para que eles, nesses próximos seis meses, continuassem administrando a Cinemateca enquanto não se encontra outra solução.

 

 

A associação está ligada a grupos políticos ou vereadores que possam representar a luta pela Cinemateca?
Nós temos no Congresso vários deputados de diferentes partidos em contato com a APACI. Mas neste momento em particular, a gente não se organizou com nenhum partido político, até por falta de tempo. Primeiro, queremos levantar a chama, e a partir dela, articular uma ação política.

Como a Associação vê as ingerências do governo, que chegou a cogitar a inclusão de Regina Duarte na Cinemateca?
Nesse momento, a Cinemateca não tem nada, não tem ninguém. O que a Regina Duarte faria ali? Sentar numa cadeira e dirigir os fantasmas do lugar? Os funcionários não estão recebendo salário, eles não têm nada. Além disso, o contrato existente no momento preserva o cronograma da ACERP, onde simplesmente não existe lugar para a Regina Duarte. O governo não pode indicá-la. Uma matéria recente inclusive confirmou que ela não seria mais colocada lá. Nem gostamos muito de discutir a questão da Regina Duarte, porque não dá para levar a sério essa indicação. Ela não faz parte da Cinemateca.

 

 

A expectativa imediata das manifestações seria de conquistar maior visibilidade pela mídia, mobilizar ainda mais a classe cinematográfica?
Não. A classe artística já sabe muito bem da situação. Nós queremos mobilizar a sociedade, porque a Cinemateca pertence a ela, não aos cineastas. A Cinemateca constitui um patrimônio da sociedade civil. Na verdade, queremos sensibilizar o maior número possível para que se tome providências concretas no sentido de superar este momento altamente crítico. A sociedade é um organismo complexo. Parte das pessoas não entendem, parte não quer entender, e outra parte é capaz de entender, mas está desinformada. Algumas pessoas sequer sabem o que significa a palavra cinemateca. Mas essa educação não constitui um papel deste ato pontual que vai durar menos de uma hora. Trata-se de um esforço institucional a longo prazo, que a própria Cinemateca deveria ter efetuado. É papel de uma direção competente explicar à sociedade por que ela existe. Mas a gente sabe que a Cinemateca está na UTI há sete anos. Agora, está chegando no fundo do poço.

É importante mencionar o reconhecimento das Cinematecas francesa, suíça, e de festivais ao ato.
Até a década passada, por volta de 2006, a Cinemateca Brasileira era uma das quatro maiores cinematecas restauradoras do mundo, com equipamentos sofisticadíssimos. Ela era muito respeitada, e tinha atingido um nível impressionante. Por isso, o Festival de Cannes apoia esta luta, assim como a Associação dos Realizadores Franceses, comandada pelo Costa-Gavras. As mais diferentes associações de estudo do mundo inteiro contribuem, além das Cinematecas boliviana, mexicana, belga, espanhola. São órgãos da maior importância apoiando a manifestação.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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